«Há uma leitura benévola dos furacões judiciais que a todo o momento continuam a abater-se sobre o sistema político: a justiça, ainda que lenta, funciona e chega a todos os poderes. Em teoria, uma boa notícia, meio século depois da promessa de uma democracia saudável em que qualquer cidadão tem os mesmos direitos e deveres independentemente da sua condição. O problema é começarmos a estreitar a perspetiva e a analisar ao detalhe as consequências desta torrente de casos mediáticos.
Do lado da justiça, desde logo, temos uma preocupante fuga seletiva de informações que potencia a justiça-espetáculo e a circulação no espaço público de elementos parciais que dificultam o esclarecimento e a avaliação contextualizada dos processos. Temos, adicionalmente, uma morosidade que deita por terra a ideia de eficácia e que mostra em toda a sua dimensão a total assimetria entre arguidos desprotegidos perante o sistema e os que dispõem de meios para recorrer a todos os expedientes processuais e mais algum.
Quando nos viramos para a política, o risco é igualmente evidente. A dimensão e velocidade de surgimento de operações e suspeitas de crimes graves, cometidos no exercício de funções públicas, minam os partidos ligados à governação e descredibilizam a função política. Se há hoje uma perceção de que a corrupção é uma doença endémica e de que os políticos são todos iguais, muita da responsabilidade é dos próprios titulares de cargos públicos e dos partidos, que têm sido incapazes de impor padrões éticos exigentes.
Aqui chegados, temos dois cenários possíveis. Um deles é o crescimento dos populismos, que se alimentam do lodo mesmo quando afirmam querer combatê-lo. O outro é a capacidade de autorregulação por parte dos partidos e a sua efetiva consciência de que a democracia não é eterna e só sobrevive com a defesa intransigente dos seus valores fundadores. Celebrar Abril é assumir que há muito a reconstruir, mais do que a recordar. Que há erros de percurso que importa urgentemente corrigir. Sem essa visão coletiva, exigente e quase utópica, seremos consumidos pela raiva. Ela espreita-nos em cada canto das redes sociais e da vida pública, em marchas que se anunciam sem vergonha, em extremismos que nos desequilibram como comunidade. Resta-nos ser intransigentes a esvaziá-la.»
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