7.2.24

Açores e o cordão sanitário intermitente

 


«Apesar da evidente vitória da coligação de direita, mudou menos nos Açores do que parece. Com exceção do Bloco e do PAN, todos os partidos que elegeram deputados aumentaram a sua votação. Não parece ter havido grandes transferências. Em percentagem, a maioria PSD-CDS-PPM teve mais meio ponto percentual, o mesmo número de deputados e mais cinco mil votos. O PS teve menos três pontos percentuais, menos dois deputados e mais 800 votos. E o Chega quase duplicou a sua percentagem, mais do que duplicou a sua representação parlamentar e teve mais cinco mil votos. Ou seja, Chega e PSD-CDS-PPM parecem ter ido buscar votos à abstenção, que diminuiu. Só a análise mais fina pode tirar conclusões das motivações dos novos eleitores.

PSD-CDS-PPM ficaram oficialmente em primeiro (somadas as votações dos três, nas últimas, já tinham ficado). Isto permite-lhes apresentarem-se como preferidos para governar, ao contrário do que aconteceu em 2020, em que só se aliando depois ficaram à frente dos socialistas. Quanto às necessidades de alianças, a dependência em relação ao Chega até aumentou, porque este, sozinho, consegue garantir uma maioria, coisa que não acontecia em 2020, em que a IL também era necessária. E mudou outra coisa: o mesmo líder que se uniu ao Chega para impedir que o partido mais votado governasse finge esperar que esse partido viabilize o seu governo, agora que teve mais votos, para não ter de recorrer ao mesmo Chega a que voluntariamente recorreu, para governar sem vencer, em 2020.

Deixo para outro texto as razões porque me oponho, aqui e nos Açores, a um bloco central informal que entregue a oposição ao Chega e os votos do PS à governação do PSD, e vice-versa. E não trato disso aqui porque o descaramento do que se está a dizer sobre os Açores (que o desequilíbrio da presença mediática da direita faz que passe como normal) não merece um debate tão apurado. É a pessoa que rompeu o cordão sanitário com a extrema-direita para chegar ao poder que está a pedir que a oposição se anule para ele passar a dispensar a extrema-direita, quando já não precisa dela. Se o PSD dos Açores quisesse romper essa dependência não teria como candidato o homem que a criou, depois de perder as eleições.

Defendi a geringonça e defendo que governe quem constrói maiorias. Mas defender isto tem o preço da coerência. Não serve quando se fica em segundo e deixa de servir quando se fica em primeiro, achando que quem lidera o bloco oposto tem o dever de se abster de ser oposição. Não é à vontade do freguês. Eu acho que o PSD não tem qualquer dever de viabilizar um governo do PS, mesmo que Pedro Nuno Santos fique em primeiro. Nisso, Bolieiro estava de acordo comigo, mas só enquanto lhe deu jeito.

Imagine-se que, em 2019, depois de ter ficado em segundo nas eleições anteriores e mesmo assim ter governado com em entendimento à esquerda, António Costa exigia que o PSD viabilizasse o seu novo governo porque agora estava em primeiro. Imagine-se que o PS não tinha conseguido maioria absoluta em 2022 e, depois de BE e PCP o terem feito cair, vinha dizer que, tendo existido uma coligação negativa entre BE, PCP e a direita, o PSD tinha o dever de viabilizar um governo seu e não, como aconteceu, o BE e PCP. O PSD diria, com toda a razão, que Costa tinha escolhido os seus aliados quando ficou em segundo e não tinha qualquer autoridade para fazer exigências. É o que se está a passar nos Açores. Que autoridade tem para pedir apoio do PS para impedir a influência da extrema-direita a mesma pessoa que se aliou ao Chega para impedir que o PS governasse? Não será descaramento a mais?

José Manuel Bolieiro não se pode aliar ao Chega quando fica em segundo, para conquistar o poder, e exigir ao PS que o livre do Chega quando fica em primeiro, porque sabe que agora será chamado a governar. Se queria que o PS viabilizasse o seu governo agora teria de ter viabilizado um governo do PS em 2020. Foi Bolieiro que decidiu que o PS era oposição quando ficou em primeiro. Oposição tem de ser, por maioria de razão, quando fica em segundo.

O que o PSD tem de fazer é apresentar o seu governo e deixar que o Chega decidir, sem qualquer negociação ou acordo, se quer mostrar ao país que a sua função é impedir que a direita governe, mesmo quando o PSD fica em primeiro. O teste à fanfarronice do Chega é o teste à coragem e determinação do PSD. Mas, quando até já percebeu que o Chega vai viabilizar o governo de Bolieiro, tenta-se aproveitar a oportunidade, reduzindo a pressão sobre o Chega da e transferindo-a para o PS, por cálculo político na campanha nacional. O PSD limita-se a usar o Chega para entalar o PS. É a instrumentalização do Chega que várias vezes critiquei em Costa e Santos Silva.

Se alguma transposição se pode fazer do que se passa nos Açores para o país, é esta: se o PS ficar em primeiro o PSD não viabiliza o seu governo e alia-se ao Chega, se o PSD fica em primeiro o PS está obrigado a viabilizar um governo do PSD para o salvar do Chega com quem, por acaso, esteve aliado durante três anos, nunca se comprometendo a não repetir se voltasse a ficar em segundo. Quando perde, o PSD usa o Chega para impedir que o PS governe, quando ganha, usa-o para impedir que o PS faça oposição. Quem transformou o Chega num partido relevante para o poder foi Bolieiro. Não tem qualquer problema com as ideias do Chega. Só prefere governar anulando a oposição, levantando uma espécie de cordão sanitário intermitente.»

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