«A ver se consigo reconstituir o essencial do primeiríssimo e desastroso momento da maioria de direita. O PSD decide chegar a um entendimento para troca de votos com o Chega, garantindo a eleição de Pacheco de Amorim – já tinha sido a sua posição em 2022 – e o voto dos 50 deputados de extrema-direita em José Pedro Aguiar-Branco. Não fez, nem antes nem depois, um esforço de entendimento com o PS, deixando claras as suas preferências para o futuro, no que não corresponda a prender os socialistas a um orçamento para o impedir de fazer oposição.
Nas 12 horas seguintes, a AD deixa que Nuno Melo e Paulo Rangel neguem o entendimento com o Chega que nunca foi recusado por quem tem responsabilidades parlamentares. Apesar das pantomimas habituais, o Chega mostra compreensível incómodo por ser tratado como “intocável” por quem não deixa de querer os seus votos. E como é o Chega, tira o tapete ao PSD sem qualquer aviso.
Não satisfeito com o disparate, Miranda Sarmento resolve acusar o PS (com quem nem sequer falou) de se aliar ao Chega (com quem o PSD tinha um acordo), numa total inversão dos factos (a aliança que correu mal era entre PSD e Chega) e dinamitando pontes que ainda pudessem existir com os socialistas que decidira ignorado. E ainda tem a lata de ir pedir ao PS que seja uma espécie de suplente do Chega, substituindo os votos que este negou à última da hora.
Assim começou o mandato de Luís Montenegro como líder de uma curta maioria parlamentar. Prova-se que gerir silêncios não chega para ser um bom líder, muito menos quando o contexto político é tão difícil como este. A sorte é isto não ser importante para a vida concreta dos portugueses.
Algumas lições que o PSD pode tirar de um episódio que, se não tiver cuidado, se pode transformar no padrão desta legislatura. Um começo que já está a ajudar a marcar o lugar que cada um ocupará neste complexo xadrez político.
1 – O País não é a Câmara Municipal de Lisboa. As regras não são as mesmas, as consequências de uma crise não são as mesmas, o que está em jogo para cada um dos partidos não é o mesmo, o dramatismo de cada derrota não é o mesmo e o escrutínio mediático não é o mesmo. A “estratégia Moedas” de ir apresentando coisas a ver quem chumba para depois se vitimizar encontrará muito mais dificuldades e resistência. Duvido que funcione como tem funcionado em Lisboa.
2 – Aconselha-se o respeito político pelos oponentes. O PSD teve 29% dos votos, a pior percentagem (somada com o CDS) de sempre, e tem 78 deputados, exatamente o mesmo que o PS – na realidade, se o CDS valer o mesmo que o pior resultado de sempre, com Francisco Rodrigues dos Santos, o PSD vale menos 30 mil votos do que o PS. É deslocada a arrogância com que entrou neste processo.
3 – PSD, PS e Chega estão lutar pela sua autonomia estratégica que pode determinar a sua própria sobrevivência política. Isso será, em grande parte, decidido nestes primeiros meses, em que ficará claro que se o PSD tem um interlocutor preferencial, se fica em condições de o prender à sua governação e se terá condições para o responsabilizar por uma crise política. Será isto que dará mais ou menos liberdade de cada um decidir o que fazer a qualquer momento – no caso do PS, isso inclui oposição construtiva, só possível se não ficar sob chantagem. Nenhum aceitará ser usado sem dar muita luta. O PSD terá de decidir se quer matar o PS, amarrando-o ao seu governo, ou se prefere normalizar o Chega, abrindo o diálogo com ele. Tudo mau, mas é o que resulta das eleições.
Os jogos de sombras, as meias palavras, os acordos escondidos, as chantagens dissimuladas só resultariam com muita arte política. Aquela que conhecemos, como a poucos, a António Costa. E que Luís Montenegro está muito longe de ter. Não tendo, deve evitar brincar com o fogo. Neste jogo, o PSD terá de fazer escolhas e aceitar o preço dessas escolhas. Quando quiser fazer acordos com o Chega, terá de os assumir. Quando quiser falar com o PS, não fala antes com o Chega (os socialistas não aceitam conversar tripartidas) e tem em conta que está a conversar com um partido que tem os mesmos deputados que ele.
O primeiro dia do resto da vida do PSD não podia ter sido mais desastroso. Juntou-se o amadorismo ao cinismo, uma combinação politicamente explosiva. O Chega mostrou a massa de que é feito e que não aceita ser o amante escondido. O PS mostrou que não cai facilmente em ciladas e não aceita ser o plano B do PSD.
O Chega conseguiu o caos de que se alimenta. O PS conseguiu uma primeira volta em que houve três blocos e o da esquerda é maior e uma segunda em que já só o Chega, que ficou pelo caminho, pode ser pressionado. O PSD, com a sua displicência arrogante e o seu jogo dúplice, ofereceu ao PS todas as condições para apresentar o seu próprio candidato. E ofereceu ao Chega o poder de decidir. Ninguém conseguiria tramar o PSD como o PSD se tramou.»
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