18.4.24

A dolorosa mensagem política de uma decisão judicial

 


«Não é apropriado dizer que o Ministério Público sofreu uma nova derrota com a leitura que o Tribunal da Relação de Lisboa fez do seu recurso sobre as medidas de coacção a Diogo Lacerda Machado e Vítor Escária – e que o juiz de instrução já havia recusado. Bastam as angústias sobre o actual estado da Justiça, e em especial do Ministério Público, para impedir que espantos deste quilate se transformem em confrontos a preto e branco. Mas, com as conclusões da Relação, tem agora menos sentido persistir na tese de que tudo é normal, que é a justiça a funcionar, que os procuradores de processos sensíveis como o é a Operação Influencer devem ser isentos de perguntas, de dúvidas ou ainda mais de críticas contundentes. Porque, como se lê na decisão da Relação, o que está em causa é o que sempre se suspeitou que estivesse em causa: um abuso do poder judicial ou, por outras palavras, uma leviana ingerência do poder judicial no poder político.

Os desembargadores que recusaram o recurso do Ministério Público são claros como água a notar este abuso quando escrevem que "desta análise resultou que nenhum dos factos adiantados se traduziam na comissão de crimes, não ultrapassando o desenvolvimento das funções de cada um dos intervenientes, tendo todos eles actuado no âmbito das mesmas". De uma forma mais simples, os juízes consideraram que a participação dos lobistas em defesa dos seus clientes, a intervenção dos gestores da empresa interessada no avanço das obras ou os membros do Governo que se empenharam em facilitar os processos agiram no âmbito das suas competências. Que se saiba, defender um interesse privado não basta para se arriscar prisão preventiva ou depositar cauções milionárias. Que se conheça, intervir no processo legislativo ou pressionar o pessoal da administração pública para acelerar investimentos de assumido interesse nacional não é pecado.

Desde o início, o cerne da Operação Influencer estava inspirado na ideia pura, logo irrealista, de que o mundo da economia e dos negócios se desenrola na placidez de uma moral celestial. Onde não há interesses, nem lóbis, nem pressões, nem poderosos escritórios de advogados, nem gente que ganha muito dinheiro por olear e pôr a máquina dos projectos em acção. Uma ideia segundo a qual um secretário de Estado ou um ministro se podem dar ao luxo de abdicar das suas funções para decidir retocar leis ou corrigir áreas onde existem charcas eventuais. Os lobistas ou os promotores de grandes investimentos podem ser pouco simpáticos por defenderem causas egoístas. Os governantes têm o dever de analisar as suas propostas, medi-las em termos de impacte na criação de riqueza ou de postos de trabalho e decidir em conformidade.

Como se sabe, a luta pelo investimento externo é feroz. Não se ganha sem negociação e cedências. Um projecto da dimensão do Smart Campus é bom para Portugal. Por isso, o pior que podia acontecer era esperar que quem governa não lutasse por ele. Nessa luta, não pode haver favor, tráfico de influências, prevaricação ou qualquer perfume, mesmo leve, de corrupção. O que a Relação de Lisboa nos diz é que nenhum facto indicia esses crimes. Que as escutas apresentadas apenas provam que lobistas e agentes do Governo falaram ao telefone. Ou à mesa de restaurantes.

Não havendo indícios fortes de crimes, os governantes devem ser julgados pela ética ou pela eficácia das suas decisões. Ou seja, cabe aos cidadãos produzir esse juízo e agir em conformidade nos momentos dedicados pela democracia a esse efeito. Ninguém outorgou ao MP poderes de vigiar a ética republicana. Os desembargadores são claros: “Não se pode confundir um facto, enquanto acontecimento histórico, com o teor de escutas ou mesmo com notícias de jornais”.

Compreende-se que haja um pano de fundo nesta trama do Smart Campus de Sines que convida a todo o tipo de suspeitas e consolida a ideia de um pântano moral onde coexistem os amigos com direito a tudo e os outros com o direito à lei. O vaivém de Diogo Lacerda Machado entre as operações especiais em nome do ex-primeiro ministro António Costa ou o currículo gelatinoso de Vítor Escária aguçam o apetite pela conjectura e pelo julgamento sumário. Os juízes de Lisboa condenam, de resto, a informalidade com que exerciam pressões. Escrevem: "O tribunal chama a atenção para a incorrecção de se tratarem assuntos de Estado à mesa de restaurantes, olvidando procedimentos e esquecendo a necessidade de se documentarem as relações havidas entre representantes de interesses particulares e os governantes no âmbito das suas funções". Uma lei que regule o lobbying e obrigue ao registo de todas as diligências poderá reduzir esta actividade – será ingénuo acreditar que a extingue –, notam também os magistrados.

Apesar do contexto, um Estado de direito democrático não age ou reage em função de instintos, de feelings pessoais ou de indícios soprados para os jornais. E ainda menos, sublinha a Relação, alegar factos no recurso que o Ministério Público não referiu no documento de apresentação dos arguidos a interrogatório viola os deveres de “probidade e boa-fé”. A mundivisão de um país afundado na corrupção que exige uma luta sem quartel em nome da salvação por parte do MP é um pesadelo. Que exige respostas urgentes. Uma parte do próprio MP já seguiu esse caminho indispensável. Mas há quem resista em nome da independência. O processo contra a procuradora adjunta Maria José Fernandes é disso uma prova.

Errar acontece e, felizmente, estamos ainda muito longe de ter condições para cair em teorias da conspiração ou em acusações levianas. No geral, o MP é um esteio do Estado de direito. O problema torna-se mais complexo quando se sabe que processos desta natureza, que chegam a suspeitar de autarcas que nomeiam sem concurso chefes de gabinete, como aconteceu em Matosinhos, se multiplicam. É a soma de todos estes incidentes que merecem ser discutidos. Parece haver uma franja do MP que não entende os perigos do justicialismo para a democracia. Alguém lhes deve dizer que os políticos não são todos corruptos e culpados até prova em contrário. Que esse é o programa da extrema-direita.

Haja, por isso, alguém lá dentro que explique aos mais jovens, aos mais impulsivos, aos mais justiceiros ou, possivelmente, aos que mais subscrevem a cartilha da extrema-direita que o império da lei se faz com factos, não com percepções. Nem com a jactância própria dos que se decidem a salvar o país da ruína moral. O MP faz falta para garantir a justiça, não para nos salvar dos videirinhos ou de quem decide mal no Governo. Para estes, os cidadãos têm um trunfo: o da democracia.»

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