15.4.24

Choquinho fiscal com arroz malandrinho

 


«Quem vá ouvir as intervenções de Luís Montenegro com atenção percebe como o embuste do “choque fiscal” para as classes médias não resultou de um erro de comunicação. Há, nas formulações que foi usando na campanha e no debate sobre o programa de governo, uma vontade deliberada de iludir. De não mentir expressamente (apesar de várias vezes se ter aproximado disso), mas deixando no ar a grande descida do IRS. Não é um assunto menor. O fim da “resignação com a carga fiscal máxima e recusa [do PS] em baixar impostos” foi o ponto central da campanha da AD.

Foi o mesmo António Leitão Amaro que agora se choca com a incompreensão dos jornalistas (e a estupidez dos eleitores) que falou, na campanha, da “maior redução da carga fiscal em tempo de crescimento económico de que há memória”. Ora, a maior redução só poderia ser os 1500 milhões de euros, não os 200 milhões. Ou então, esqueceu-se de avisar que a sua histórica redução de carga fiscal era, na realidade, apenas para as empresas. Só que também disse que havia “uma prioridade clara na redução dos impostos sobre o rendimento do trabalho”. E que isto representava “um conflito de visões” entre o PS e o PSD.

Como é que o governo pode dizer que “sempre foi claro” quando, no programa eleitoral, tinha uma secção para elencar as diferenças com o PS e a primeira era que a AD “rejeita a resignação com a carga fiscal máxima e a recusa [do PS] em baixar impostos”? As redes sociais da coligação garantiam que, “ao contrário da equipa socialista da demissão, comprometemo-nos com a baixa de impostos e da asfixia económica que tem afetado os portugueses”. Há uma razão para Montenegro nunca ter respondido, nos vários debates, como iria pagar o choque fiscal. Montenegro sabia o que nós sabemos agora: que não havia choque fiscal para lá do apoio à grande distribuição e à banca com a descida cega do IRC e um “retoque” na diminuição das taxas do IRS colocadas no Orçamento de Estado por Costa e Medina.

Há meses que digo que o “choque fiscal” e o cenário macroeconómico da AD eram uma fraude política. E numa coisa a AD tem razão: o escrutínio da comunicação social à sua campanha, às suas propostas e ao programa de governo tem sido incrivelmente benévolo. Talvez isto sempre aconteça no início de um novo ciclo. Que sirva de lição.

Sendo um dos coordenadores do programa da AD, não foi por não o ter lido com atenção que Leitão Amaro disse que a descida de impostos, com prioridade para os rendimentos do trabalho, seria a maior da história em crescimento económico. Essa descida histórica era, afinal, em 88%, responsabilidade do PS. Ao dizer que isto era o que o separava do PS, Leitão Amaro quis enganar os eleitores. Mentiu. E Montenegro quis prolongar a mentira.

Dada a irrelevância do retoque ao corte fiscal aprovado pelo PS, o que a AD nos explica é que, apesar do tal “conflito de visões”, passou uma campanha a anunciar um corte fiscal no IRS que já estava em vigor e a defender o “choque fiscal” que o PS já tinha feito. E, agora, fica sonsamente indignado porque tanto as pessoas que não votaram neles, e que sentem que a vitória da AD resultou de um engodo, como as que acreditaram neles, se sentem enganadas. Restam-lhes os ativistas do Twitter para defender o indefensável.

Curiosamente, é a mesma AD que exige o apoio do PS à sua pequena baixa de impostos que votou contra o Orçamento de Estado que permitiu o corte fiscal de que se quis apropriar na campanha. Este episódio teve, no entanto, uma vantagem: perceber que, pelo menos à luz dos critérios da AD, o único autor de um “choque fiscal” foi o PS. E que a asfixia fiscal da classe média de que tanto se fala resumia-se, afinal, a menos de 200 milhões de euros. Tanto barulho por tão pouco.

O objetivo da chico-espertice era esconder que a reforma fiscal se resumia a baixar o IRC para as maiores empresas. E, de arrasto, fazer com que o eleitorado pensasse que o corte que sente no bolso por decisão do PS resulta do que a AD agora anuncia. Só que grande parte dos magros 170 milhões de descida do IRS vão para os escalões mais altos, que correspondem a 15% dos contribuintes. É isto a famosa "classe média"? Mesmo para esses, não chegará a 20 euros por mês de alivio para cada agregado (individual ou familiar). É certo que estes 15% de contribuintes representam 42% das receitas fiscais, mas incidir esta descida – que terá efeitos na disponibilidade financeira do Estado – nos cidadãos que recebem qualquer coisa como 40 mil a 100 mil euros brutos por ano é um programa de classe.

O pequeno alargamento aos escalões mais altos que a AD faz à descida do IRS garantida pelo PS; o efeito limitado aos jovens mais abonados do IRS Jovem e das isenções fiscais para a compra de primeira habitação; e uma brutal borla fiscal que terá um efeito preferencial nas 0,2% das empresas que pagam metade do IRC – sobretudo distribuição alimentar, energia e banca – repetem o padrão do PSD: anuncia descida de impostos para a maioria, recebendo assim o seu voto para aliviar o fardo fiscal de uma minoria. Fossem outros os destinatários e era dos impostos indiretos ao consumo, regressivos, que estaríamos a falar, e não da descida de impostos progressivos. É esse o programa da AD, disfarçado com o discurso da “asfixia fiscal”: diminuir a progressividade do sistema. Só não pode ser tão claro como a IL porque, ao contrário desta, precisa dos votos dos mais pobres.

Poderíamos fazer um esforço para acreditar que tudo isto não passou de um equívoco se não fosse, em Montenegro, uma reincidência. Já o "rendimento mínimo garantido para os pensionistas" foi embrulhado para parecer o que não era, com uma dimensão que não teria. Esta é uma das coisas que o silêncio de Luís Montenegro esconde: que é um habilidoso.»

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