«Quando perguntaram a Palmiro Togliatti, líder do PCI entre Gramsci e Berlinguer (com Luigi Longo pelo meio) e teórico da “via italiana” parlamentar para o socialismo, o que tinham os comunistas ensinado aos italianos, ele respondeu: “Ensinámos aos camponeses e aos operários a não tirarem o chapéu quando o patrão passa.” Ouvi esta frase quando revi “A Coisa”, o documentário de Nanni Moretti sobre o debate interno antes da transfiguração do menos pró-soviético dos partidos comunistas em coisa nenhuma. Mas não é de comunistas que quero falar. É daquilo a que se quer reduzir a nossa Revolução.
Abril deu ao trabalhador a dignidade de não tirar o chapéu ao patrão, à mulher o direito a deixar de pedir autorização ao marido, ao negro a experiência de não tratar o branco por “senhor”. Primeiro em explosão de liberdade, só depois com direitos formais. O 25 de novembro, que o povo apoiou sem alguma vez festejar, foi necessário para travar a caminhada para o abismo das “vanguardas”. Mas hoje serve para os outros derrotados desse dia (os que Melo Antunes travou quando queriam a revanche saudosista) tentarem criminalizar essa explosão inicial, transformando a Revolução num mero golpe de Estado. Do 25 de Abril fazem parte o 28 de setembro, o 11 de março, o 25 de novembro. Mas só Abril libertou. E resumir essa libertação ao fim da censura e da polícia política ou à adoção da democracia parlamentar é ignorar o que há mais tempo oprimia os portugueses: a miséria, a dependência, o favor, a herança. O que acabou com a indignidade foram os direitos dos trabalhadores, o sistema de reformas universal, as fé¬rias, o 13º mês, a escola pública para todos, o Serviço Nacional de Saúde. Sobraram relíquias, como o corporativismo. Na justiça, onde está intacto, alimenta o justicialismo antidemocrático de uma casta “moralmente superior”. Tivéssemos optado pela serena transição e assim seria tudo o resto, com os velhos poderes a tutelar a jovem democracia.
Não há liberdade a sério para quem vive em necessidade. Quem não tem direitos não pode deixar de tirar o chapéu ao patrão que passa. Não há mulheres livres que não se sustentem a si mesmas. Um cidadão não vive em democracia se o medo impera na empresa onde trabalha. O que libertou e democratizou o nosso país foi, antes de tudo, uma profunda revolução social. Parte vinha de antes, muito chegou depois, como acontece sempre nestas mudanças. Sem exagerar nos resultados, porque ainda somos dos países mais desiguais da Europa, os portugueses libertaram-se quando deixaram de depender do padre para continuar a estudar, da sorte para não morrer no parto, do berço para chegar ao ensino superior, da obediência ao patrão para manter o emprego. Se a extrema-direita ameaça a democracia política, outros têm atacado estas conquistas, que veem como um perigo para a liberdade do privilégio. Não atacam o Abril que nos une. Atacam o Abril que, democraticamente, continua em disputa. Aquele que operou uma mudança ainda mais profunda do que a mudança de regime.
Em “A Coisa”, um outro militante em sofrimento existencial diz: “Quando os comunistas perdem a ideia da revolução, perdem o sentido da aventura. Sem sentido da aventura tornam-se gente aborrecida e, como vimos, até gente perigosa.” Não quero o regresso da utopia comunista que, tendo combatido a exploração onde foi resistência, deixou um rasto de crime onde chegou ao poder. Por estes dias, a (verdadeira) social-democracia chega e sobra como radicalidade. Quero que alguém se recorde que o 25 de Abril não se fez para estarmos de acordo. Se gritamos “25 de Abril, sempre”, é porque ele está sempre em disputa. Quando apenas servir para unir os que defendem um modo de Governo, estará tão morto como o 5 de outubro. Abril deu-nos o direito a sermos do “contra”. Por isso o celebramos com uma manifestação de protesto, coisa incompreensível para estrangeiros que vão espreitar a avenida. Porque ainda não é apenas mais uma festa do regime.
Engana-se quem diz que Abril não se cumpriu. Conquistámos os instrumentos para decidir o nosso futuro. Se, nas últimas décadas, reduzimos a democracia à seleção dos gestores de coisas inevitáveis, isso foi escolha nossa. E essa escolha talvez tenha ajudado a inchar a extrema-direita. A democracia deixou de prometer mais do que o olhar alcança. E isso mata as ditaduras, as democracias, todos os regimes. A extrema-direita cresce porque as pessoas precisam que alguém diga que quer mudar alguma coisa. Apesar de não serem mais do que o sistema por meios mais agressivos, ao menos fingem que são do “contra”. Nós, como diria José Mário Branco, “saímos à rua de cravo na mão sem dar conta de que saímos à rua de cravo na mão a horas certas”. Defendemos as conquistas de Abril, a memória de Abril. Tanto empenho em defender Abril que nos esquecemos que Abril nos trouxe o direito à dissidência. Esquecemos que somos os que um dia tomarão o castelo, não os que o defendem. Se queremos celebrar Abril, reinventemos a desobediência. Ou, perante a evidência que deixámos de conquistar coisas novas, os seus inimigos ocuparão esse lugar.»
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