«A direita ultraconservadora aproveitou a nova governação para se manifestar nas ruas de 12 cidades do país, pela revogação da eutanásia, e para preparar um recuo no acesso à interrupção voluntária da gravidez. A eventual repetição de um referendo ou a alteração da lei, como defendeu na campanha eleitoral Paulo Núncio, líder da bancada do CDS, faz parte dos objectivos.
Este afã em restringir o direito ao aborto contrasta com o que acontece noutros países europeus. Polónia e França são bons exemplos.
Até há pouco tempo um dos bastiões do ultraconservadorismo europeu, a Polónia está mais próxima do que nunca de uma lei de liberalização do aborto (uma comissão parlamentar vai debater quatro propostas de lei nesse sentido) e da revogação da legislação herdada do PiS, que limita o recurso ao aborto a casos de violação, incesto ou apenas quando a saúde da mulher está em risco.
Em França, Emmanuel Macron fez com que aquele país se tornasse o primeiro do mundo a inscrever o direito ao aborto na Constituição, por entender que o “corpo das mulheres lhes pertence e ninguém tem direito a dispor dele em vez delas”, e porque assim garante que aquele direito não pode ser posto em causa pelo primeiro reaccionário misógino que se lembre disso.
Em sintonia com o caso francês e ciente das crescentes restrições, o Parlamento Europeu aprovou a inclusão de todos os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, com o direito ao aborto incluído, na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Falta que o Conselho Europeu aprove a recomendação dos eurodeputados. Mas nem todos os governos reconhecem esses direitos, e o português é um deles.
O primeiro-ministro está contra esse reconhecimento porque, ao contrário do Presidente francês, não acha que o corpo das mulheres lhes pertença. Montenegro acha que a “consagração como direito fundamental da interrupção voluntária da gravidez traz um desequilíbrio no ordenamento jurídico, porque significa que dos dois direitos que estavam em conflito [direito à autodeterminação da mulher e o direito à vida do nascituro], no fim, vai prevalecer integralmente apenas um, o que significa o desaparecimento do outro.”
Há uma agenda de direita misógina e retrógrada, alimentada pelo fundamentalismo católico, que se sente incentivada a sair das catacumbas e que reúne parte do PSD, CDS e Chega. É essa direita que defende a pertinência de criar o estatuto legal e fiscal para a “mulher dona de casa”, porque as mulheres são “mais propensas” a estar em casa, porque efectuam “actividades insubstituíveis” e porque, além disso, a “maternidade é reservada às mulheres”.
Não tarda nada e estará a propor que as mulheres não conduzam, assim como não podem conduzir uma homilia, com o argumento de serem mais propensas à sinistralidade rodoviária. E que tal uma polícia dos costumes?
Quem defende o estatuto legal da “dona de casa” bem pode defender a institucionalização da figura do chefe de família e a dependência da mulher casada face ao respectivo marido e, porque não?, sugerir, até, o regresso ao Código Civil do Estado Novo.
Seria coerente com quem afirma, com desfaçatez, que não gosta do 25 de Abril. Por outras palavras, as de André Ventura, na semana passada, no Parlamento, “já ninguém quer saber do 25 de Abril”. E dos direitos das mulheres?
Estes movimentos querem trocar a cidadania pelo catolicismo e impor um conceito de família redutor e repressivo, que não é mais do que a limitação do papel e direitos das mulheres e a exclusão de toda a família que não encaixa no binómio da heterossexualidade normativa. Fazem-no sem embaraço, desonestamente.
Até a diocese de Leiria-Fátima se associa à falsidade da conversão sexual de homossexuais, que foi criminalizada com os votos contra do PSD e Chega, como fez neste fim-de-semana, num congresso com o tema "Homens e Mulheres de Verdade", com base na crença de que a homossexualidade é uma perturbação psicológica.
Esta direita reage bem aos apelos de Pedro Passos Coelho, porque responde bem ao ressentimento, o que só pode assustar quer Luís Montenegro, quer André Ventura. O primeiro vai tentar o equilibrismo entre a agenda conservadora com que se candidatou e a agenda que aqui e acolá quer resgatar à direita ultraconservadora. O segundo pode ser relegado a um segundo plano pela entrada em cena do ex-primeiro-ministro.
Passos Coelho tem tudo a seu favor para, por pragmatismo ou ideologia, juntar a direita que nos governa e a outra num processo de reconfiguração, com a beatice da guerra cultural contra os adversários da família e a emancipação da mulher como denominadores comuns. A regressão dos direitos começa pela negação dos direitos das mulheres. E tudo o resto vem a seguir.»
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