13.6.24

Eles já passaram!

 


«Fascistas, racistas não passarão! Não passarão?

Custa escrever, custa acreditar, mas eles já passaram! É difícil reconhecer o que não queremos ver, porque constitui uma derrota e uma ameaça. Estamos em estado de negação. Este é um fenómeno internacional. O que começou por ser “impossível”, “um fenómeno residual”, “só uma minoria”, passou a estar omnipresente no espaço público, contaminou as ruas, os media, a Assembleia da República. Condiciona eleições, impõe agendas políticas e mediáticas, um clima de tensão e de agressividade permanente e designação de bodes expiatórios.

A extrema-direita tem o talento cobarde de atacar sempre, prioritariamente, as populações mais vulneráveis, com menos possibilidade de organização, minorias com pouco ou nenhum poder, que por vezes se encontram em modo sobrevivência, sem tempo, energia ou recursos para travar lutas de defesa da sua dignidade, igualdade e mesmo segurança. Foi de segurança, aliás, que uma pessoa migrante, originária do Bangladesh, trabalhador em estufas como cortador de cravos, falou esta semana publicamente com André Ventura. Desesperado, com a voz embargada de emoção, disse ao líder da extrema-direita portuguesa ter mandado embora a sua filha pequena nascida em Portugal por ter medo, insistindo no facto de Ventura passar o tempo a dizer coisas racistas.

Muito se tem escrito sobre a psicologia dos racistas, sobre quem odeia o outro, muitas vezes até para desculpabilizar ou relativizar o racismo. Mas raramente se fala do que sentem as pessoas discriminadas que são alvo de ódio racista, xenófobo, misógino ou LGBTfóbico. A pessoa que interpelou André Ventura deu-nos uma amostra do que sente uma pessoa vítima de discurso de ódio. Os efeitos negativos do discurso racista, de ódio “são reais e imediatos para as vítimas de propaganda de ódio feroz provocando sintomas fisiológicos e angústia emocional, que variam desde um medo no estômago até um pulso acelerado e a dificuldade em respirar, pesadelos, transtorno pós-traumático, hipertensão, psicose e suicídio”, escreve Mari J. Matsuda no artigo "Public response to racist speech: considering the victim's story" (1989). Não é preciso ser vítima de violência física para sentir os efeitos do racismo no seu corpo. As palavras, os discursos que conduzem depois a mão de quem passa para a violência física já são armas por si só.

O discurso de ódio não serve somente para que os grupos que o propagam criem coesão entre si, nem para fixar a identidade dos sujeitos alvos do ódio, “o ódio também atua desfazendo o mundo do outro através da dor”, escreve a filósofa Sara Ahmed em The Cultural Politics of Emotion (2004). Essa dor pode ser física, mas também mental e moral com repercussões nefastas sobre a saúde das pessoas vítimas do discurso de ódio. Além disso, as vítimas são, como descreve ainda Mari J. Matsuda, “restringidas na sua liberdade pessoal” e recorrem, para não receber mensagens de ódio, a estratégias de evitamento que põem em causa as suas vidas, como abandonar empregos, casas, renunciar à educação, evitar determinados locais públicos ou restringir o seu próprio exercício dos direitos de expressão. “Por mais que se tente resistir a uma peça de propaganda de ódio”, explica Matsuda, “o efeito na autoestima e no sentimento de segurança pessoal é devastador”.

Geralmente, os seres humanos não gostam, e têm medo, de ser odiados, desprezados ou isolados.“Por mais irracional que seja o discurso racista, ele acerta no local emocional onde sentimos mais dor”, sublinha Matsuda, que insiste no facto de esta sensação de solidão ser também sentida consoante a resposta institucional, do Governo, da polícia ou dos tribunais. A forma como os polícias preferiram no 10 de junho proteger um ajuntamento neonazi enquanto reprimiam com violência manifestantes antirracistas é só um dos exemplos do abandono institucional. Eles já passaram! E, por isso, o tempo da prevenção já passou, devemos passar à fase de organização para um ataque frontal ao problema e o primeiro passo passa por admitir: eles já passaram!»


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