7.6.24

O Ministério Público nunca desperdiça uma campanha eleitoral

 


«A dois dias do fecho da campanha para as europeias surge a notícia de que foram realizadas buscas pela Polícia Judiciária (PJ) em torno do “caso das gémeas”. O trabalho esforçado da investigação criminal decidiu centrar-se no gabinete do ex-secretário de Estado do PS, Lacerda Sales, e no Hospital de Santa Maria.

Não desvalorizo o caso, nem a investigação, mas pergunto-me sobre a estranha agenda de atuação do Ministério Público. É que nos dias que correm sabemos que há três coisas que são garantidas quando temos eleições em Portugal: discursos enfadonhos (check); uma ameaça ao Chega, que lhe permite o discurso de vitimização (check); e buscas do Ministério Público (MP) em torno de processos e figuras ligadas ao PS (check).

Quanto às buscas, já nem consigo fingir qualquer surpresa. A história dos últimos anos do MP deixa cada vez menos espaço para interpretações ou ambiguidade. Em linguagem de investigação diria que os indícios se acumulam.

Sabemos que há anos que o MP arrasta uma investigação sobre a Câmara Municipal de Lisboa, onde achou por bem envolver figuras do PS, porque eram referidas em conversas de dirigentes do PSD. O resultado prático de quase 7 anos de investigação da “operação Tutti-frutti” sobre os dirigentes do PS são, contudo, escassos. De tempos a tempos, o MP coloca algumas notícias nos jornais que nada esclarecem. E a investigação tende a avançar ritmada pelo calendário eleitoral, porque é quase sempre em véspera de eleições que se realizam mais algumas buscas.

Mais recentemente, o MP brindou-nos com a “operação Influencer”, que foi colapsando por indecente e má figura aos olhos de todo o país. Mas que fez cair um primeiro-ministro, levou à demissão do governo e conduziu a eleições que deram uma vitória à direita.

Agora, nas vésperas de europeias, a Polícia Judiciária volta a realizar buscas em torno do PS. Curiosamente, nada é dito sobre eventuais investigações em torno da Presidência da República, onde o “caso”, como todos sabemos, teve a sua origem.

Dir-se-á que esta atenção especial do MP devota ao PS se deve ao facto de os socialistas terem governado por longo tempo e de as suspeitas e indícios terem de ser investigados. Acresce o óbvio: o caso Sócrates e a recente condenação de Manuel Pinho mostram à saciedade a permeabilidade de governantes socialistas à captura do Estado por interesses privados.

Não tenho qualquer discordância. Pelo contrário: as minhas expectativas são até mais ambiciosas em relação ao MP. O que me parece estranho é que outras responsabilidades governativas e outros indícios não mereçam a mesma atenção da PJ e do MP.

Estou entre aqueles que ainda aguarda serenamente que as investigações sobre a privatização da TAP em 2015, em que se suspeita que a compra pelo investidor privado tenha sido feita com o dinheiro da própria TAP, chegue a alguma conclusão. Sou daquelas que gostaria também de saber como é que a privatização da Groundforce, paga supostamente pelo privado com a própria receita operacional da empresa, foi negociada. Gostaria de ser esclarecida como é que a concessão dos aeroportos à Vinci foi tão negligentemente negociada, com custos brutais para o Estado Português como o Tribunal de Contas recentemente demonstrou. Valia igualmente a pena que soubesse mais sobre o famoso contrato secreto de venda do BES a um “fundo abutre” e da negociação que Sérgio Silva Monteiro, ex-secretário de Estado do governo de Passos Coelho, conduziu já sob a tutela de Centeno e António Costa e que tanto custou aos cofres públicos. Sou paciente, mas noto o silêncio ruidoso do MP em negócios que venderam por tuta e meia empresas que são agora “galinhas dos ovos de ouro” para os privados, prejudicando o Estado e os contribuintes portugueses em milhares de milhões de euros. Por outro lado, gostava ainda de saber se já temos algumas conclusões ou avanços na investigação sobre o financiamento do Chega, que na última campanha eleitoral não conseguia explicar as verbas avultadas que lhe têm chegado aos bolsos. Gostava de saber também se André Ventura não incorreu num conflito de interesses ao estar numa comissão parlamentar de inquérito em que um dos seus financiadores partidários tinha um interesse direto. Não me assusto com investigações, quero mesmo mais investigação. Só me inquieto com a sua aparente seletividade.

A sensação de instrumentalização política da investigação criminal já não pode ser ignorada e os riscos que esta dúvida implica para o regime democrático são brutais. O MP está em risco de ser visto como um ator político interveniente no combate político, com interesses ilegítimos que não a justiça e a legalidade, e com um alvo partidário a abater. O combate à corrupção perde a legitimidade e a confiança, que são condições centrais na investigação criminal. O Ministério Público é hoje um grave problema do regime democrático.»


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