15.8.24

Pactos e batatinhas

 


«Desde a pandemia, o “caos” de verão e de Natal nas urgências e nas maternidades foi central para a perceção do fim de ciclo político. Com a ajuda do ativismo do bastonário da Ordem dos Médicos, hoje deputado do PSD, as urgências fechadas eram o símbolo do estado do país e dos serviços públicos. Os problemas do SNS são estruturais e transversais ao resto da Europa. Com o aumento da esperança de vida e um desenvolvimento científico que cria novas expectativas, a pressão sobre o SNS é muito maior e a saúde custa, no público ou no privado, muito mais. Ou desistimos de garantir a todos o melhor do progresso em saúde ou desistimos do alívio geral de impostos, optando por distribuir melhor encargos fiscais crescentes. A isto junta-se o especial envelhecimento do país e as justas expectativas alimentadas pelo que já foi um dos melhores SNS da Europa. As coisas não estão bem, mas a sensação de caos é dada pelas urgências, e especificamente na obstetrícia. Temos falta de médicos, mas no ano passado bateram-se recordes de consultas, operações e atendimentos. Perante o aumento do investimento público e da despesa privada em saúde, é preciso racionalizar meios. Foi para isso que se criou a Direção Executiva do SNS.

O novo Governo dedicou os primeiros meses do seu mandato a um plano de comunicação, com a apresentação de pacotes e planos de emergência. Apesar de Montenegro ter garantido que o plano de 16 medidas urgentes se tratava de “um programa, como se diz no próprio título, que visa dar uma resposta imediata a vários problemas, dificuldades e constrangimentos” nos três meses seguintes, só uma está concluída. A direita quis convencer as pessoas de que as soluções eram simples e só não eram aplicadas por preconceito ideológico do PS, que até aumentou o recurso do SNS ao privado. É verdade que os seguros de saúde representam 40% do mercado, mas apenas 3% a 5% da despesa, o que, como explicou o economista Pedro Pita Barros, quer dizer que “muitas pessoas têm seguros, mas consomem cuidados que custam pouco”. Não será o privado a aliviar os problemas do público. A falta de médicos é geral e o máximo que se pode fazer, recorrendo ainda mais ao privado, é mobilizar para lá os médicos do público, agravando o problema.

Perante o embate da propaganda com a rea¬lidade, Ana Paula Martins, que só conseguiu criar métodos de seleção ainda mais complexos, atrasando a contratação de médicos para o SNS, começou a disparar para todo o lado. Contra o INEM, mentindo sobre a renovação dos contratos dos helicópteros. Contra “a cadeia de liderança” do SNS, que acusou de fraqueza. Contra a Direção Executiva do SNS, tentando a humilhação pública. Não foi pelos problemas acumulados no passado que, logo em meados de julho, os encerramentos e os constrangimentos nas urgências já eram, respetivamente, 40% e 300% superiores aos do verão passado. As coisas pioraram porque a ministra começou o mandato a destruir o que era o princípio de uma solução e a afastar quem estava a mostrar trabalho.

Apesar de a situação ter piorado, os denunciantes mudaram de lugar. As televisões foram dando conta das falhas, mas não criaram o clima emocional que levou à demissão de Temido e ao desgaste de Pizarro e Costa, mostrando que o jornalismo é hipersensível aos ciclos políticos. O Presidente, que antes navegava na maré de descontentamento, diz que a ministra precisa de tempo, ignorando o estrago que provocou no pouco tempo que teve. Quanto à Ordem dos Médicos, se antes era surda aos apelos do Governo, impondo um mínimo irrealista de médicos nas urgências (especialmente relevante em obstetrícia), de que os privados estavam dispensados, mostra-se agora disponível para rever o que era inegociável.

Chegados aqui, a novidade é um apelo para um “pacto para a saúde”. Na oposição, o PSD instrumentalizou a Ordem e espalhou um ambiente de histeria que impediu qualquer debate. Em campanha, prescreveu receitas milagrosas baseadas em convicções ideológicas. Nos PowerPoints prometeu respostas “imediatas”. No terreno rebentou com soluções que demoram tempo a implementar e afastou quem as aplicava. Esgotado o efeito de pacotes e planos, tenta passar para o próximo número de comunicação: o dos pactos. Só que a situação das urgências não se agravou por intransigência da oposição, mas pela arrogância conflituosa da ministra. Não se entra a partir tudo e, quando se percebe que se fez asneira e se prometeu o impossível, pedem-se pactos e batatinhas. O pacto já existe e chama-se Lei de Bases da Saúde. A reforma estrutural já avançou e chama-se Direção Executiva do SNS. Falta deixar que as reformas mostrem resultados. O que Montenegro quer é que a oposição o salve da ministra que escolheu.»


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