17.8.24

Pai, filho e espírito olímpico

 


«Acontece muitas vezes e voltou a acontecer nos Jogos Olímpicos. No fim de uma competição desportiva, o vencedor aponta para o céu e agradece a Deus. Isto é verdadeira fé. O desportista não se limita a acreditar em Deus. Ele acredita que Deus todo-poderoso, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, nos intervalos de governar o universo, tem tempo e paciência para acompanhar, digamos, a Liga 3 — e, após análise cuidada do jogo, interferir no sentido de o Lusitânia de Lourosa-Anadia terminar com a vitória dos anfitriões por 3-2 (após 1-2 ao intervalo). Bem sei, bem sei: até os cabelos da nossa cabeça estão todos contados. Ainda assim, talvez seja cómico imaginar que Deus — que, às vezes, por distracção ou inabilidade, permite que um tsunami destrua cidades inteiras — não se esqueça de premiar João Vasco Lima Santos de Miranda com a autoria do golo decisivo com que o Lusitânia de Lourosa bateu o Anadia.

O fenómeno é ainda mais engraçado quando ocorre no mundo dos desportos de combate. Tenho visto muitos praticantes de artes marciais a agradecer ao Pai do céu o facto de lhes ter permitido espancar o seu adversário até ele ficar inanimado. No entanto, ao que me dizem, o adversário é filho do mesmo Pai. Ou seja, o lutador agradece que o Pai tenha um filho preferido — que, no caso, é ele. Vamos supor que as minhas filhas decidem lutar numa jaula. E eu, além de não as tentar impedir, em vez de ser um árbitro imparcial, ajudo uma delas a nocautear a outra. Em princípio, alguém chamará a Comissão de Proteção de Menores. É provável que investiguem que raio de educação tenho eu dado às miúdas. Talvez queiram saber a razão pela qual eu fiz questão de que uma delas sofresse uma concussão, para glória da outra. Também devem estar interessados em descobrir porque é que a minha filha predilecta não tem vergonha de me agradecer em público o facto de eu a preferir, nem de revelar que contribuí para a sua vitória. E eu, como creio que sabem, nem sequer sou omnipotente. Esse é outro problema. O atleta crente revela que deve a sua vitória ao facto de ter uma entidade todo-poderosa do seu lado. Ora, assim também eu ganho. É doping metafísico, a que o Conselho Nacional Antidopagem, ao que parece, continua a fechar os olhos. O desportista mais admirável, nesse caso, é o derrotado. Sobretudo quando, mesmo enfrentando Deus, consegue só perder por 3-2 aos 90’+1’, como o Anadia. Glória ao Anadia.»


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