28.9.24

Medo das eleições e eleitoralismo

 


«Não há sistema de governo dos homens que seja perfeito. Como todos os ditadores sabem, a força é o meio mais eficaz de obter medo e obediência. Mas, umas vezes por pequenos períodos de tempo, de forma irregular e imperfeita, a força da liberdade permite aos homens governarem-se com base na igualdade e fraternidade, e a isso tem-se chamado democracia.

Uma das forças da democracia, e não são muitas, é absorver as imperfeições, os conflitos de interesses e ideológicos, as diferenças, as contradições por meio de procedimentos que, mantendo a vontade popular expressa pelo voto, permite introduzir os elementos culturais e volitivos que nos afastam do estado da natureza, ou seja, do reino da força, em que todos nos comemos uns aos outros, ou só uns comem.

O maior risco numa democracia já com certo grau de consolidação não vem do voto (há excepções, Trump), mas da contaminação dos seus procedimentos pela sua irmã gémea, a demagogia. O populismo é um exemplo, o eleitoralismo é outro.

Na actual situação portuguesa há um impasse governativo, resultado das fragilidades do PSD e do PS, perante a emergência do Chega. Esse impasse gera um efeito de ingovernabilidade, e essa ingovernabilidade traduz a impotência dos dois maiores partidos em quebrar eleitoralmente esse empate. No entanto, é muito difícil que ele se quebre sem novas eleições, sabe o PS e sabe o PSD. Mas saber e querer são coisas diferentes e entre um e outro há outra forma de saber, que é de natureza táctica – como fazer? E PS e PSD não sabem como fazer, sentem a tensão, mas receiam responder-lhe.

Acresce que, pelos vistos, os portugueses (que são, aliás, nestas coisas uma entidade abstracta) não querem eleições e estariam dispostos a punir quem as provocasse. Isto é um daqueles lugares-comuns que podem alterar-se conforme seja o processo de as provocar. Quem já viu muito sabe que a acção muda a percepção e quem tem medo, para além de comprar um cão, mete-se dentro de casa. O problema é quando o cão sabe o que quer e tem posição. Acontece.

De qualquer modo, numa situação de impasse, vale sempre a pena ultrapassar uma certa preguiça e inércia democrática que nunca é uma boa razão para estragar a governação.

Os dois partidos têm uma política que oscila entre o receio e a hesitação, um medir forças retórico e uma interiorização da ingovernabilidade. Nesse processo, a vantagem tem sido toda do PSD, que beneficia do statu quo e de tácticas mais consistentes do que o PS. Uma delas é o eleitoralismo.

Nunca me lembro, na nossa democracia, de um ciclo de benesses dia a dia tão sistemático como o que se assiste agora. Não contesto a justiça dessas benesses, aumentos de salários, regalias, subida de salários mínimos e médios, aceleração de carreiras, recuperação de tempos de serviços, mas isto não é uma política que corresponda a qualquer programa estrutural, é meramente conjuntural. Ou seja, o seu objectivo é duplo, preparar eventuais eleições antecipadas, e pressionar o PS para tornar penalizadora a reprovação do Orçamento, que bloquearia muitas dessas benesses.

Todos os governos, e os partidos que deles fazem parte, tomam medidas deste tipo nas circunstâncias que consideram razoáveis, mas mesmo nestes casos nunca se viu em meia dúzia de meses, dia após dia.

Uma regra básica da democracia é que no início dos mandatos tomam-se as medidas difíceis e no fim as fáceis. É natural que os governos sejam eleitoralistas em vésperas de eleições e isso faz parte de um cânone democrático, mas a condição para um bom governo é que seja capaz de tomar medidas impopulares no início da governação. Uma diferença fundamental da democracia representativa em relação à democracia directa é a existência de tempos dos mandatos. É por isso que, em muitos sistemas constitucionais, os mandatos dos senadores são mais longos do que os deputados, para permitirem decisões mais difíceis e impopulares em matérias orçamentais e da guerra e da paz. A democracia distingue-se da demagogia exactamente por essa capacidade de tomar decisões difíceis, mas hoje, e não só em Portugal, governos e partidos fragilizados voltam-se para a demagogia e o populismo. Por tudo isto, é que o eleitoralismo é bom para o presente e péssimo para o futuro.»


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