23.9.24

O cerco marcelista ao PS

 


«A informalidade de Marcelo foi útil quando o Estado falhou aos cidadãos, como nos incêndios de 2017. Conseguiu, pela forma, vencer o conteúdo dos populistas. Mas teve custos. A incapacidade de manter sobriedade institucional e de ficar no perímetro das suas competências foi origem de instabilidade política. Não é incontinência verbal. Quando lhe deu jeito, soube gerir silêncios.

Em queda desde que o caso da gémeas manchou a sua imagem, tornou-se facilmente manipulável. Carente de palco, até é usado como escudo para possíveis problemas para o governo, como aconteceu no último Conselho de Ministros.

Andemos para trás na “fita do tempo”. Tinha Costa uma maioria absoluta que conquistara há pouco mais de dois anos, por via de outra dissolução, e já se instalara uma sensação de crise alimentada por pequenos episódios diários, como a crise das urgências ou falta de professores. Tudo regressa num governo acabadinho de estrear, mas o estado de graça permite relevar. Vivia-se o desgaste natural de oito anos que, em democracias maduras, não leva a crises políticas. Mas Marcelo alimentou-a, com conversas estapafúrdias sobre uma possível dissolução, noticias plantadas, pequenos factos políticos.

Quando a PGR fez de António Costa um suspeito sem suspeitas, o clima político estava em ponto caramelo. E Marcelo foi o primeiro Presidente a dissolver o parlamento sem haver o mínimo indício de vir a existir uma alternativa viável. Para Costa, que apoiou a sua reeleição, tudo acabou bem. O país é que ficou ingovernável.

Depois das eleições, com dois partidos quase empatados e uma situação de ingovernabilidade à vista, não houve, da parte do Presidente, qualquer sinal de exigência. Viciado no frenesim, queria posse rápida. Mesmo com os jornais a darem a conhecer, através de fontes da AD, que a estratégia era repetir 1987, indo para eleições o mais depressa possível, Marcelo não pôs qualquer condição e deixou que esta ideia se instalasse, retirando qualquer pressão sobre o governo.

Começada a novela da negociação do Orçamento, a pressão de Marcelo concentrou-se sobre o PS, recordando que ele próprio viabilizou orçamentos de Guterres. Esqueceu-se de dizer três coisas: que o PS tinha quase a maioria absoluta, não quase um empate; que não foi empurrado para negociações prévias e formais; e que ele próprio não chegou às eleições seguintes.

A pressão prévia a qualquer negociação não serve para facilitar o diálogo. Tira ao PS o pouquíssimo poder negocial que ainda tinha, quando todos sabem que não quer ir a votos. Se se alimentar a ideia da intransigência do PS – o número de ontem, em torno da marcação frustrada de reuniões, entusiasmará os jornalistas com o “diz que disse” e só serve para isto – é ainda mais tentador para Montenegro ir a eleições, com essa narrativa. Assim sendo, as suas cedências serão aparentes, para consumo mediático e eleitoral. A pressão sobre o PS, neste momento, é um incentivo para o governo apresentar um Orçamento ainda mais marcado. Funciona contra a moderação e o diálogo.

O Presidente sabe que a AD é a única força que não se importa de ir a eleições. Sabe que, a ser precisa alguma pressão, é sobre Montenegro. A marcação de dois conselhos de Estado para logo antes e logo depois da apresentação do OE é mais um momento de pressão sobre quem já está entalado. Com a atual composição, inclinada à direita, é cinismo vir dizer que Pedro Nuno Santos vai poder “falar à vontade” sem haver “pressão”. É mais um episódio do cerco presidencial ao PS, para que este viabilize qualquer Orçamento, anulando-se e deixando a AD solta para governar sem negociar e o Chega solto para fazer oposição sem assumir compromissos.

O outro foi plantar nos jornais que sem OE aprovado dissolve o parlamento (pela terceira vez, na sua presidência). É música para os ouvidos de Montenegro, cujos círculos próximos já têm falado de demissão, caso o PS não lhes dê a mão. Negociar, para quê? Devo recordar que Portugal esteve, durante meses, em 2022, em duodécimos. Sem drama. E é falso que o PPR não possa ser acomodado. Ao fazer saber que se não houver Orçamento de Estado haverá eleições, o Presidente diz a quem deseja esse desfecho para negociar. Ou seja, diz ao governo para não ceder. Mesmo que não seja esse o seu objetivo. É que Marcelo tem demonstrado que o seu génio analítico já teve melhores dias.

A AD até tem a vida facilitada. Pedro Nuno Santos definiu, como linhas vermelhas, o IRS Jovem e o IRC. Mesmo que faça outras exigências, o PS fica numa situação muito difícil se o governo deixar cair pelo menos o que tem maior impacto orçamental e é politicamente mais indefensável: um esforço de mil milhões de euros anuais em grande parte canalizado para os jovens mais privilegiados, violando a progressividade do sistema e mínimos de igualdade perante a lei. Uma proposta injusta, ineficaz nos objetivos a que se propõe, provavelmente inconstitucional e que o Conselho de Finanças Públicas já explicou que levaria a um défice em 2026, ainda por cima. Não se trata de ficar a meio caminho desta proposta. Isso não é aceitar uma linha vermelha. Trata-se de perceber que um governo com 29% dos votos não faz uma revolução fiscal sem ter maioria para isso.

Na realidade, o governo até tem maioria que precisa: a IL e o Chega. Se o IRS Jovem é fundamental, Montenegro negoceia com quem concorda com ele, se não quer negociar com o Chega, prescinde do IRS Jovem. O dilema é simples de resolver, mas Montenegro quer o melhor dos mundos: não faz qualquer cordão sanitário ao Chega, com quem até negoceia; não paga o preço de ter o voto da extrema-direita; mas aprova o que o Chega defende com os votos do PS, anulando o maior partido da oposição. Com o apoio diligente do Presidente, que, no seu vício pela intriga, nos deixou como herança um país partido em três e estruturalmente ingovernável.»


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