«1. Se há hoje palavra que começa a tornar-se-me insuportável, é “talento”. Sobretudo quando associada a migrações. Para que não haja equívocos: é perfeitamente legítimo identificar e defender os contributos potenciais das migrações em domínios tão diversos como os da economia ou da demografia, bem como definir políticas públicas com o objetivo de potenciar esses contributos. Nesse sentido, reconhecer que a imigração pode ajudar a aumentar os recursos humanos necessários ao desenvolvimento do país é não só legítimo mas também do mais elementar bom senso. Como o é definir e aplicar políticas púbicas com esse objetivo. O mesmo se poderá dizer sobre o contributo das migrações em muitos outros setores da economia, com diferentes graus de qualificação, ou ainda da indispensabilidade das migrações para atenuar os desequilíbrios da transição demográfica em curso. As migrações são úteis ao país.
2. Porém, as migrações não são apenas ou sempre úteis. Podem ser irrelevantes em termos de utilidade, ou mesmo fonte de tensões nas sociedades de destino. Quer as migrações, quer as reações às migrações. E aqui começam os problemas. Uma coisa é afirmar a utilidade das migrações, outra é definir uma política de imigração apenas em função dessa utilidade. Como, da mesma forma, uma coisa é identificar tensões nas migrações, outra é concluir que isso implica, necessariamente, oposição às migrações. Conhecer os problemas que podem existir nas migrações deveria servir, acima de tudo, para definir políticas públicas que contrariassem esses problemas, não que os eliminassem interditando as migrações. Pois há razões para aceitar as migrações para além da sua utilidade socioeconómica.
3. Infelizmente, é hoje dominante a ideia de que devemos justificar as migrações com essa utilidade, e apenas com essa utilidade. Por isso, argumenta-se que devem ser calculadas as necessidades de mão de obra, qualificada e indiferenciada, nos diferentes setores da economia (como se isso fosse possível), e admitidos apenas aqueles que fossem necessários para suprir essas necessidades. E, sobretudo, que a atração de talento, a utilidade mais procurada, deve ser a prioridade das prioridades da política de imigração. Esta ideia é triplamente chocante: por um lado, porque olha para as migrações e os migrantes apenas em termos da sua utilidade para a economia do país de destino, desumanizando-os; em segundo lugar, porque reforça a desigualdade persistente entre migrantes – alguém com qualificações superiores já tem, antes de qualquer política de atração, muito mais probabilidade de migrar do que quem tem menos qualificações – e, em terceiro, porque não reconhece qualquer talento no desempenho de profissões menos qualificadas, nomeadamente manuais: há os talentosos e todos os outros (os medíocres, presume-se).
4. Põe-se assim de lado o facto de as migrações não serem apenas, nem sobretudo, o resultado das necessidades dos países para onde se dirigem. São, antes de mais, escolhas, projetos de quem, na origem, quer ou precisa de mudar de vida e tem a sorte de possuir os recursos para realizar essa mudança migrando. Mas que se vê envolvido, quando escolhe migrar, ou a isso é obrigado, numa prova de obstáculos, as fronteiras nacionais, umas mais abertas, outras mais fechadas. Ou, cada vez mais, escancaradas para quem é definido como talentoso e fechadas para todos os outros. Num mundo em que as políticas migratórias tendem a ser mais unidimensionais, baseadas apenas em interesses, é importante assinalar a possibilidade e a virtude de outras orientações, baseadas em valores. Como, recordando um exemplo já muitas vezes citado, está gravado na base da Estátua da Liberdade, à entrada de Nova Iorque: “Mantenham antigas terras sua pompa histórica!” grita ela / Com lábios silenciosos “Dai-me os seus fatigados, os seus pobres, / As suas massas encurraladas ansiosas por respirar liberdade / O miserável refugo das suas costas apinhadas. / Mandai-me os sem-abrigo, os arremessados pelas tempestades” (versos finais do poema O Novo Colosso, de 1883, por Emma Lazarus, autora norte-americana de origem luso-sefardita).
5. Eu sei que Portugal, em 2024, não tem a capacidade de acolhimento dos EUA nos finais do século XIX. Mas uma coisa é ter limites, que são, aliás, sempre maiores do que pensamos, como nos ensina a integração de mais de meio milhão de retornados num único ano, em 1975, na altura por muitos entendida como impossível. Outra coisa bem diferente é olhar para as pessoas apenas como recursos e abandonar toda a réstia de humanidade na definição das políticas de imigração. É diferente e é feio.»
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