20.9.24

O milagre da despolitização dos incêndios

 


«Se compararmos com os incêndios de 2017, bem diferente é o papel do Presidente. Onde antes fazia avisos no terreno, hoje presta solidariedade incondicional em Conselho de Ministros. Bem diferente é o comportamento da comunicação social. Onde antes procurava responsabilidades, hoje assiste a briefings sem perguntas. E, no entanto, há política para debater. Já não falo da repetição de erros, como falhas graves no corte inicial de estradas, que só não acabaram em tragédia por sorte. Ou da fraquíssima comunicação prévia às populações. As coisas estão melhores porque o sobressalto nacional de 2017 levou a que se tomassem medidas nos anos seguintes. Mas, mais uma vez, há debates políticos a que temos de regressar.

Já nem me refiro às alterações climáticas. Temperaturas superiores a 30 graus, humidade inferior a 30%, vento superior a 30 km/hora são a receita para o desastre. E esta combinação atingiu, em várias regiões do país, o primeiro lugar desde 2001. O verão de 2023 foi o mais quente de que há registo na Europa. A Europa aqueceu mais depressa do que qualquer região do globo — 0,5 graus por década, nos últimos 30 anos. E o maior contributo vem do Sul, onde estamos. Nós somos das principais vítimas das alterações climáticas e só as debatemos para desancar ativistas. Nestas circunstâncias, o máximo que podemos sonhar é defender vidas e bens. Até a Califórnia, com parques nacionais cuidados, perdeu quatro mil quilómetros quadrados de floresta este ano.

Mas o que está apenas nas nossas mãos é o desordenamento crónico do território. Não é que não tenhamos aprendido nada com 2017, como li por aí. É que o problema vai muito para lá de políticas sectoriais. Temos grande parte do território abandonado e envelhecido. Não há quem cuide da floresta, para que ela dê o rendimento que financia a sua preservação. Não se conseguiu que terras com donos absentistas fossem integradas numa gestão coletiva que lhe garanta recursos. Nem que a limpeza da mata compense, como já compensou. Não se pode esperar que o abandono do território não tenha como consequência a incúria. Com a floresta abandonada, só o eucalipto parece ter retorno. E se a árvore das patacas dá dinheiro, deixa-se que ela acabe com o resto. É o que fazemos com o turismo: sem conta, peso e medida.

Nisto, não aprendemos mesmo nada desde 2017. Os eucaliptais ocupam 10% do território nacional, muitíssimo mais da área florestal. Mesmo assim, 81% da área reflorestada depois de 2017 são eucaliptos. E parece não chegar. A Navigator defende um aumento da área para a plantação, deixando no ar uma crítica às tímidas alterações a uma lei liberalizadora do Governo de Passos, cujo secretário de Estado das Florestas foi para diretor-geral da associação que reúne os gigantes da celulose. Se fizermos a justaposição dos mapas dos incêndios e da área de eucaliptal, veremos uma coincidência quase absoluta. A espécie, não autóctone, tomou conta do território como uma praga. E larga, perante ventos superiores a 30 km/h, folhas incineradas que espalham o incêndio.

O debate político não tem de se resumir a encontrar bodes expiatórios. Mas Montenegro soube precaver-se. O seu briefing sem perguntas concentrou-se no fogo posto. Também poderia ser o tema de 2017, quando o crime também “sobrevoava” a calamidade. Mas nessa altura os criminosos foram, para o PSD, ministros e primeiro-ministro. Sempre houve fogo posto. Mas temos um quarto das ignições que já tivemos. O mesmo que Inglaterra. E só 1% delas são responsáveis por 90% da área ardida. Há centenas de incêndios que não chegam a ser problema. A questão é por que progridem até serem incontroláveis. Mas não é por acaso que o primeiro-ministro abordou o tema do fogo posto da forma mais populista possível, falando de interesses não concretizados (sem que lhe pudesse ser perguntado a que se referia) e prometendo perseguir os criminosos. Com um discurso popular sobre crime, afastava, preventivamente, o foco das políticas públicas.

Montenegro conseguiu que tudo o que é político, do ordenamento do território à invasão do país pelo eucalipto, da economia da floresta às falhas iniciais destes incêndios, desaparecesse. Sem perguntas, com o Presidente como escudo e a ministra da Administração Interna fechada numa cave durante os dias mais críticos, fez do fogo posto o tema central, lançando suspeitas vagas e prometendo substituir-se à polícia. Assim, o Governo passou de ator político a vítima do crime, desviando as atenções para o que enoja todos. Em comparação com 2017, demonstra génio na comunicação política. Mas isso chega?»


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