19.12.24

Acontecimento nacional de 2024: Tumultos em Lisboa, revolta e imitação

 


«Romão Monteiro, 33 anos, Matosinhos, 1994; Ângelo Semedo, 17 anos, Cova da Moura, 2001; Manuel António Tavares Pereira, (Tony), 24 anos, Bairro da Bela Vista, 2002; Carlos Reis (PTB), 20 anos, Bairro do Zambujal, 2003; José Carlos Vicente (Teti), 16 anos, Bairro 6 de Maio, 2004; João, 17 anos, Bairro Amarelo, 2005; Edson Sanches (Kuku), 14 anos, Bairro da Laje, 2009; Nuno Rodrigues (Mc Snake), 30 anos, Alcântara, 2010; Diogo Filipe Borges Seidi (Musso), 15 anos, Bairro 6 de Maio, 2013; Ihor Humenyuk, 40 anos, Aeroporto Humberto Delgado, 2020.

Fico-me pelos mortos, fico-me pelos casos conhecidos. Deixo de fora os espancamentos, em que o caso da esquadra de Alfragide, em 2015, deu mais nas vistas pela sua barbaridade, caracter claramente racista e ter, como vítimas, dirigentes associativos. Uns morreram do tiro, outros do espancamento, uns na rua, outros depois da passagem pela esquadra. Foram poucos os casos em que a culpa não morreu solteira ou com punições quase simbólicas.

O que aconteceu a Odair Monir é tudo menos novidade. É recorrente. Sempre perante a indiferença geral da comunidade, que acha que o que se passa nestes bairros fica nestes bairros. A não ser, claro, que lhes perturbe o quotidiano. E foi isso que aconteceu em novembro deste ano: o País acordou, pela primeira vez, para a reação violenta e aparentemente desorganizada aos recorrentes casos de violência policial.

Os tumultos, inéditos em Portugal, podem explicar-se por um ambiente polarizado pela extrema-direita, que tornou o confronto com as minorias e com os moradores dos bairros periféricos mais claro e direto. Pelo cansaço de populações acossadas pelo permanente assédio policial – na região de Lisboa, as ações mais ‘musculadas’ aumentaram 769% entre 2012 e 2021. Pela impunidade descarada perante os casos mais graves – os condenados da esquadra de Alfragide voltaram, apesar da decisão judicial, para a PSP. E a proteção que parece merecer o discurso racista propagado pelo Chega e alimentado dentro das forças de segurança. Não há ação sem reação, sabemos pela história.

Por fim, é provável que haja um fenómeno de imitação cultural. Os motins e ações depois da morte de George Floyd, nos Estados Unidos, chegaram com enorme intensidade em Portugal, levando até a uma das primeiras manifestações no período da pandemia. Da mesma forma que a extrema-direita cresce com a globalização cultural e política facilitada pelas redes sociais, cresce a reação dos jovens dos bairros periféricos. Seja a reação violenta, como foram os tumultos, seja a reação pacífica e política, como foi a impressionante manifestação na Avenida da Liberdade, em que estes jovens exigiram, pela primeira vez, o direito à cidade. Não será a última. Estas comunidades têm, pela primeira vez, jovens lideranças mais qualificadas e politizadas.

Se, independentemente da inaceitável violência dos tumultos, de que resultou uma vítima inocente que carregará para sempre as marcas desta violência, este fenómeno devia merecer, acima de tudo, atenção política, e não apenas policial. Para além de uma reunião com associações, para picar o ponto e sem qualquer agenda, o poder político repetiu o erro de sempre, mesmo quando os sinais foram tão fortes. O governo, como a generalidade dos meios de comunicação perante, passou a tratar a consequência da morte de Odair Moniz como mera questão de polícia.

Não foi só o ritmo mediático que, de um dia para o outro, transformou a consequência em causa. Foi o próprio poder político que inverteu, de forma consciente e premeditada, o discurso que lhe seria exigido. A PSP, desaparecida nas explicações a dar pela morte de um inocente, sentou-se no palco para prometer “tolerância zero” com os tumultos, enquanto se comprometia com uma versão dos acontecimentos que não só não tinha como garantir ser verdadeira, como tinha vários indícios de que não o seria. Terá, depois de a ter defendido, de responder por ela.

No mesmo momento em que instrumentalizavam as forças de segurança e ações de grande impacto sem outra explicação que não fossem as “perceções” politicamente alimentadas pela extrema-direita e os tabloides, Luís Montenegro e António Leitão Amaro associaram o governo à detenção dos suspeitos de envolvimento nos tumultos. Não só os transformaram em culpados, como puseram, pela sua intromissão, em causa a independência das investigações. Com a PSP e o governo a atravessarem-se por uma versão não confirmada dos casos, que espaço de manobra tem a PJ (que responde ao poder político) para os contrariar?

Este comportamento contrastou com o silêncio perante as notícias de que provas terão sido plantadas para responsabilizar Odair Moniz pela sua própria morte e que as chefias ter-se-ão substituído ao agente na elaboração do auto de notícia, enquanto este depunha na Polícia Judiciária. Aí, a ministra da Administração Interna falou de uma investigação em curso, pormenor que o governo ignorou na investigação aos tumultos. E, no entanto, é pela morte de um cidadão às mãos de quem é fardado e armado pelo Estado que o poder político tem, antes de tudo, de dar a cara. Sobretudo quando a vítima é a única vida perdida em toda esta história.

A secundarização política e mediática da morte de Odair diz-nos o que as revoltadas populações destes bairros sempre souberam: que as vidas dos seus valem menos numa sociedade que os vê como subcidadãos. É desta sensação de menoridade que nasce a revolta. E, independentemente da justa condenação moral, é daí que costuma nascer a violência. É o que sobrará se os mecanismos do Estado de Direito não funcionarem.»


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