23.12.24

Carta aberta de profissionais da saúde

 


Exmo. Sr. Presidente da República Portuguesa, Prof. Dr. Marcelo Rebelo de Sousa,
Exmo. Sr. Presidente da Assembleia da República, Dr. José Aguiar-Branco,
Exmo. Sr. Primeiro Ministro, Dr, Luís Montenegro,
Exma. Sra. Ministra da Saúde, Dra. Ana Paula Martins,
Exmo. Sr. Procurador Geral da República, Dr. Amadeu Guerra

Como profissionais de saúde, foi com profunda preocupação e perplexidade que tomámos conhecimento da alteração da Lei de Bases da Saúde mediante a aprovação do Projeto de Lei nº384/XVI/1ª sobre o acesso de estrangeiros não residentes em Portugal ao SNS. Na sua nova redação, a Base 21 da Lei nº 95/2019, de 4 de setembro, considera que o “o acesso de cidadãos em situação de permanência irregular ou de cidadãos não residentes em território nacional (…), implica a apresentação de comprovativo de cobertura de cuidados de saúde, bem como a apresentação de documentação considerada necessária pelo Serviço Nacional de Saúde para adequada identificação e contacto do cidadão, exceto no acesso a prestação de cuidados de saúde urgentes e vitais, não dispensando a apresentação posterior de comprovativo e demais documentação necessária.”

Na prática, esta disposição legal, ao privar um segmento importante da população residente em território nacional do direito à proteção da saúde, viola a garantia de acesso de todos os cidadãos e cidadãs,. consagrada no Artigo 64º da Constituição da República Portuguesa e no Artigo 35º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia. Serão privadas do acesso à saúde todas as pessoas que, mesmo tratando-se de trabalhadores e contribuintes regulares, aguardam há anos atribuição de título de residência devido às demoras processuais do SEF/AIMA.

No quotidiano, estes e estas utentes encontram já várias barreiras no acesso e manutenção de cuidados de saúde. Receamos, como profissionais de saúde, que a nossa prestação de cuidados à população, nomeadamente a estes e estas utentes, possa vir a sofrer uma limitação adicional, agravando desigualdades e desfavorecendo uma população que se encontra frequentemente em situação de vulnerabilidade. A exclusão, prevista neste Projeto de Lei, é particularmente prejudicial para quem necessita de cuidados de saúde e vigilância específicos, nomeadamente crianças, adolescentes e pessoas grávidas. Finalmente, alertamos para que se possa vir a colocar em risco a saúde pública de toda a comunidade, uma vez que deixa de estar assegurado o acesso gratuito e regular à vacinação, bem como a adequada abordagem de doenças transmissíveis que representem ameaça para a saúde pública.

Preocupa-nos ainda que a limitação no acesso a cuidados preventivos e atenção primária contribua para uma procura adicional pelos serviços de urgência (SU), que passarão a ser a única porta disponível de acesso ao SNS. Receamos também que esta medida contribua para o desenvolvimento, progressão e agravamento de situações patológicas graves e complexas, por ausência de abordagem e diagnóstico atempados. De acordo com a evidência gerada e publicada a partir do estudo de várias realidades europeias, este tipo de limitações representa um agravamento na despesa final em custos médicos e não-médicos. Por oposição, esta alteração legislativa não se baseia em números, ou evidência de que a sua aplicação possa de algum modo contribuir para resolver problemas estruturais ou de financiamento do SNS.

De acordo com o relatório da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde, menos de 1% dos episódios de urgência de 2023 foram atribuídos a estrangeiros não residentes, sem subsistema de saúde. E, nesta categoria, incluem-se os 26 milhões de turistas que visitaram Portugal nesse ano. Ou seja, o impacto dos migrantes com situação por regularizar é desprezível e não coloca em causa os serviços do SNS.

Finalmente, este Projeto de Lei colide com várias disposições previstas nos códigos deontológicos que regem as nossas profissões. No que diz respeito ao Código Deontológico Médico, o artigo 8º, relativo às Condições de Exercício, prevê que o médico não deverá aceitar “situações de interferência externa que lhe cerceiem a liberdade de fazer juízos clínicos e éticos” e o ponto 5 do Artigo 4º, relativo aos Deveres, prevê que o médico “deve prestar a sua atividade profissional sem qualquer forma de discriminação”. Neste âmbito, a serem regulamentadas e aplicadas as disposições do presente Projeto de Lei, a proteção da saúde da população visada, no âmbito da Ética e a Deontologia que regem as nossas profissões, poderá justificar ações de desobediência civil.

À semelhança da posição tomada por milhares de colegas nossos que, em França, assinaram um compromisso de honra em como iriam tratar sempre os cidadãos e as cidadãs visados/as por uma iniciativa legislativa similar, entretanto abandonada, dizemos: “Utentes daqui e de outros lados, a nossa porta está aberta para todos. E assim continuará.”


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