2.12.24

Este fascínio português por “homens que mandam” mete algum medo

 


«Há muitos anos que tenho a convicção de que a tolerância dos portugueses com a ditadura foi imensa e que a fúria revolucionária a que assistimos em 1974/1975 foi um epifenómeno.

“Vivia-se habitualmente” – a sacrossanta frase de Salazar – na ditadura. Os oposicionistas eram poucos e, em casos como o de Henrique de Barros (candidato da CEUD em 1969 e primeiro presidente da Assembleia Constituinte e depois ministro de Estado), a oposição almoçava todos os domingos com o ditador, Marcelo Caetano, de quem era cunhado.

A explicação de que o povo era analfabeto não é suficiente, porque muito povo alfabetizado também fazia a sua vida normalmente. Muitos preferiam a democracia? Sim, mas a vida continuava. O único partido organizado era o PCP.

Tive o privilégio de ter convivido com alguma frequência com Mário Soares nos últimos anos da sua vida. Várias vezes lhe “expus” a minha teoria – de um povo conformado com o seu destino que aceitava a ditadura com complacência – e ele nunca concordou. Apontava-me várias razões geopolíticas – nomeadamente, a guerra fria – para as coisas terem sido como foram.

Depois de Mário Soares ter morrido, fui reler o Portugal Amordaçado, que tinha lido muitos anos antes. E lá está, nas páginas do Portugal Amordaçado, o desalento de Mário Soares com a fraca actividade oposicionista dos seus camaradas de Lisboa.

Na entrevista que fiz a António Campos, a propósito do centenário de Mário Soares, o fundador do PS e companheiro de todas as horas de Soares concorda que a ditadura era aceite e que os portugueses viviam bem com ela: “Como é que é possível nós termos aguentado a maior ditadura de toda a Europa, 48 anos?” Campos também diz que Mário Soares “tinha uma intuição brutal e não acreditava na cultura democrática do povo português”.

Um dos resquícios que nos deixou essa falta de cultura democrática é a exaltação do “não político” e do “independente”. No Reino Unido, ninguém pode ser membro de um governo se não tiver sido previamente eleito deputado. Em Portugal, endeusa-se a figura do "independente". Nós, jornalistas – que também pecamos muito e somos reflexo da cultura em que vivemos – andamos a contabilizar o número de independentes para avaliar se um governo é bom ou mau, como se a não-militância fosse uma medalha e a militância num partido um indício de uma capacidade diminuída.

Dez anos depois do 25 de Abril, o general Eanes estava a criar um partido para “devolver a ética à política”. O partido, o PRD, era uma amálgama ideológica e morreu cedo.

Mas esse primeiro indício da popularidade de uma certa cultura anti-políticos, ainda na infância da revolução, foi consistentemente herdado por Aníbal Cavaco Silva. Como toda a gente sabe, tendo sido Cavaco o político com mais sucesso neste país – dez anos primeiro-ministro, oito deles com maioria absoluta, dez anos Presidente da República –, rejeitou sempre “ser um político”.

A palavra enojava-o e com esse desagrado publicamente enunciado conseguiu arrecadar as suas vitórias. Parece um absurdo: como é que o político com mais vitórias diz que não é um político? Se calhar, tendo em conta a pouca cultura democrática dos portugueses, exactamente por isso.

É de todo este caldo cultural que nasce o sucesso do almirante Gouveia e Melo. A “voz de comando” – de que o próprio já se gabou de ter – é um grande activo num país que só há 50 anos saiu de um regime autoritário e por exaustão dos militares com a guerra colonial.

Toda a coreografia que o almirante fez durante a campanha de vacinação – era a “guerra” dele – remete-nos para esse imaginário do “homem que manda”, aliás o mesmo imaginário que Cavaco Silva explorou à exaustão, com sucesso e o patrocínio do general Eanes nas candidaturas presidenciais.

Este assunto, que é uma realidade muito anterior ao aparecimento do partido Chega, merecia uma tese de doutoramento. Se por acaso já tiver sido feita, agradeço que me avisem.

P.S.: Um dia, o almirante Gouveia e Melo disse que se um dia se resolvesse meter na política que alguém lhe desse “uma corda para se enforcar”. A frase pode ser lida de várias maneiras e até como a antecâmara da campanha presidencial de “um não político”, já que não é previsível que use a corda.»


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