«A frase que Marcelo dedicou a António Costa na quarta-feira, na conferência do PÚBLICO na Escola, é uma referência política emocional e uma declaração de derrota.
A frase "éramos felizes e não sabíamos" é usada por toda a gente em momentos de nostalgia e de beatificação de passados em contraposição a presentes sombrios.
Para Marcelo, o presente é sombrio: tem 50 deputados do Chega sentados na Assembleia da República e vai deixar, tudo indica, a Presidência da República entregue a um militar, uma coisa que abjura. Sim, com António Costa, Marcelo foi feliz – "comparado com o que vinha aí".
Vamos à frase emocional do Presidente: "Dizia muitas vezes a um governante com o qual partilhei quase oito anos e meio de experiência inesquecível: um dia reconhecerá que éramos felizes e não sabíamos. Era tudo relativo, era uma felicidade relativa, mas comparado com o que vinha por aí, era uma felicidade".
Sim, o Presidente não está a conviver nada bem com este novo ciclo: "A realidade não está racional, está emocional. As novas lideranças são emocionais, as novas formas de comunicação são emocionais, os novos poderes são emocionais, não são racionais".
É tudo verdade, mas a realidade sempre foi emocional e pouco racional. Já o era antes, quando Marcelo foi eleito. O Presidente dos "afectos" usou e abusou das emoções. Um dos seus maiores trunfos era a sua incrível capacidade de atracção. Isto é racional? Não.
Podemos dizer que a eleição de Marcelo colocava menos riscos para o regime tal como o conhecemos do que um almirante que ainda esta quinta-feira foi fazer campanha fardado e apela sempre que pode às emoções dos portugueses sedentos de ordem e autoridade.
É um facto que Marcelo já tinha dado um mergulho no Tejo e guiado um táxi (campanha para as autárquicas de Lisboa de 1989). Comentou tudo aos domingos à noite durante décadas. E quando popularizou o seu peito nu em frente às câmaras – em si um acto emocional, em busca da dita proximidade – os portugueses já o conheciam.
O drama do grito de alma de Marcelo é ele ser co-responsável pela ascensão do Chega e do almirante. Não foi agora que a política começou a ser emocional – António Campos recorda na entrevista ao PÚBLICO como Mário Soares tinha perfeita noção da "falta de cultura democrática" do povo português, que tinha "reacções emocionais e não racionais".
O problema é que Marcelo também vê a política de forma emocional. Se tivesse sido racional, saberia que, depois da demissão de António Costa por causa do famoso parágrafo da antiga PGR – que acabaria sempre por acontecer depois de terem sido encontrados maços de notas na sala do chefe de gabinete –, não devia ter convocado eleições. Uma vez disse no nosso podcast Soundbite que Marcelo "não iria querer ter como legado a eleição de uma grande bancada do Chega na Assembleia da República".
Fui ingénua. Marcelo tinha amarrado Costa ao cargo, numa interpretação abusiva do significado das eleições legislativas, transformando-as em eleição unipessoal como é a do Presidente da República, para tentar torpedear a chegada de Costa ao Conselho Europeu.
Era possível, no nosso regime, o partido mais votado (o PS, com maioria absoluta, na época) ter indicado um outro primeiro-ministro. Marcelo deve ter hesitado e a prova é que Mário Centeno foi contar ao Financial Times que tinha sido convidado (depois foi obrigado a recuar).
Só que Marcelo tinha-se comprometido com a dissolução de que tantas vezes falara, muitas vezes a total despropósito. Na verdade, o Governo da maioria absoluta vivia no iminente risco de uma dissolução tantas vezes "ameaçada" pelo Presidente. Havia alguém que tivesse dúvidas de que nas eleições haveria lugar a uma enchente do Chega? Aparentemente, só o maior analista político da República não percebeu.
Sim, Marcelo foi feliz, não sabia e não voltará a felicidades passadas. Uma grande parte dos seus ziguezagues enquanto Presidente, das suas mudanças de humor e opinião, das suas "marcelices" abriu caminho a um futuro Presidente com o perfil do almirante. Gouveia e Melo voltou a usar esta quinta-feira o cargo de Chefe de Estado-Maior da Armada com vista às presidenciais e não tem feito outra coisa desde que chegou ao posto.
Foi o almirante que ainda esta quinta-feira disse: "Nós, militares, temos essa coisa. Temos cara de mau e quando estamos fardados temos galões, às vezes, isso ajuda. Essa autoridade lateral que nos vem da farda ajuda".
Resta saber como é que a "cara de mau" funciona com outra roupa. É que em 2025 Gouveia e Melo não andará vestido à militar e vamos ver se o sucesso emocional será o mesmo estando despido (de farda).»
Ana Sá Lopes
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