«Em 1985, após o desvio de um voo da Trans World Airlines por um grupo muçulmano xiita, a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher acusou os media de fornecerem aos terroristas o “oxigénio da publicidade”. Com esta afirmação, pretendia dizer que a grande visibilidade concedida ao ataque não seria exclusivamente uma consequência do atentado, mas uma componente constitutiva do próprio atentado. Ou seja, este não havia terminado com o desvio do avião, tendo continuado, de uma outra forma, através da intensa cobertura mediática. Num tempo em que a lógica comercial e competitiva dos media se estava a consolidar, os grupos terroristas teriam aprendido a rentabilizar essa lógica emergente a seu favor, tornando os meios de comunicação seus cúmplices não intencionais. Deste modo, um atentado sem uma forte amplificação, mesmo que materialmente executado, falharia na sua plenitude.
Salvaguardadas as devidas distâncias, é possível usar um raciocínio semelhante para analisar o mais recente evento do Chega. Na manhã em que os media estavam em direto da Assembleia da República para acompanhar o derradeiro dia de um Orçamento do Estado que esteve no topo da agenda político-mediática durante meses infindáveis, o partido de Ventura organizou um happening em vários atos: através das tarjas nas janelas, das peripécias com os bombeiros e do embaraço e impotência institucional que gerou no hemiciclo, sequestrou o Orçamento em direto, disputando-lhe o protagonismo.
Astuto gerador de notícias, o partido pretendia marcar a agenda e o debate parlamentar, mas também (e sobretudo) a agenda e o debate mediático. De facto, a “ação de comunicação”, como Ventura lhe chamou, foi encenada de acordo com a lógica dos media. Apanhados na armadilha, estes acabaram por ser co-construtores involuntários de um evento que teria sido um fiasco sem a mediatização de que beneficiou durante e após o incidente. Alguns comentadores assinalaram o destaque excessivo que lhe estava a ser dado, mas tais desabafos não impediram a extensão da cobertura.
Com variações em grau, as emissões seguiram padrões semelhantes: o “invento” abriu as horas informativas seguintes e, depois de uma peça (ou mais) sobre o assunto, convidados em estúdio debatiam o sucedido. Mesmo quando a conversa era desviada para o Orçamento, ela era acompanhada por imagens em loop do episódio matinal e/ou de oráculos a destacá-lo. Deste modo, hora após hora, cumpriam-se os objetivos do happening: capturar a agenda mediática, enquanto se perpetuavam as imagens da impotência e desadequação das instituições a novas modalidades de ação política que se edificam no estraçalhar das normas informais que regem a cultura democrática.
No ambiente mediático altamente competitivo que se articula com a lógica algorítmica das redes sociais, poderiam os media não concentrar a atenção num episódio criativo, inesperado, surpreendente, desafiador, provocador, sarcástico, espetacular? De um ponto de vista informativo, claro que não! Mas o “oxigénio da publicidade” podia ter sido bem mais rarefeito.
Por tudo isto, está mais do que na hora de os media repensarem o modelo de cobertura que pretendem seguir quando eventos semelhantes tornarem a acontecer – provavelmente ainda mais criativos e surpreendentes, sendo mais difícil resistir-lhes. Se o não fizerem, as televisões arriscam-se a ser pouco mais do que cúmplices dos seus organizadores.»
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