«Não são os 50 deputados. Não é ser a terceira força política. É o facto do Chega conseguir, neste momento, determinar grande parte da política nacional, incluindo a madeirense e a açoriana – veremos o que acontece nas autárquicas. Não por especial eficácia, mas por ter conseguido que o sistema partidário se dividisse em três blocos, nenhum deles maioritário. Como já escrevi várias vezes, os blocos não são programáticos. Eles resultam de opções táticas da direita tradicional, disfarçadas de escolhas políticas ou éticas.
Acho que toda a gente minimamente séria e atenta já percebeu que o cordão sanitário de Luís Montenegro é uma fraude. Ele só se mantém intacto onde PSD e Chega até têm pontes programáticas: em questões fiscais, orçamentais e económicas. Claro que conta o facto de ser impossível negociar com André Ventura, que consegue dizer uma coisa e o seu contrário na mesma frase. Interessa a Ventura manter os três blocos e dificilmente aceitará o abraço do urso. Conversas para poder, só quando o Chega ultrapassar o PSD.
A função deste cordão é, através da manutenção artificial dos três blocos (que não contam para saber qual o bloco com mais votos, que deve governar), manter o PS como refém, cedendo à direita no que ela mais se deveria distinguir da esquerda: nos impostos, no papel do Estado na Economia, no Estado Social.
No resto, razão primeira para que existisse um verdadeiro cordão sanitário, o governo de Montenegro tem cedido ao Chega. Seja no discurso securitário, que instrumentaliza as forças de segurança e dá força a um alarme social sem confirmação estatística; seja na criminalização da imigração, transformando o estrangeiro no principal problema nacional, seja em relação à segurança, seja no desgaste dos serviços públicos, como o SNS.
O discurso é sempre o mesmo: não podemos deixar a imigração e a segurança nas mãos da extrema-direita. O problema é que, nas prioridades de um dos países mais seguros do mundo que precisa de mais imigrantes para funcionar, tudo parece invertido. Quem acompanhe as polémicas nacionais diria que estes são os dois maiores problemas nacionais. E essa agenda foi escolhida por uma direita que, governando, se sente condicionada.
O perigo da extrema-direita não é chegar ao poder. Isso só acontece depois de se percorrer um grande caminho no debate público e na sociedade. O perigo é aquilo a que assistimos: quando ela vai tornando o seu discurso hegemónico. Um discurso que passa do café para o debate político e, neste, se torna transversal. Como podemos ouvir da boca de autarcas do PS ou na agenda mediática.
Está enganado quem julga que, acompanhando-o, esvazia o discurso do Chega. Não se trata apenas de o naturalizar, tornando-o hegemónico – o antissemitismo não era uma excentricidade política quando os nazis chegaram ao poder. O extremismo e a moderação não são identidades políticas ou morais, são posições circunstanciais. E à medida que as posições dos extremistas se tornam aceitáveis é ele próprio, ou outros por ele, que esticam a corda.
O Chega, assim como toda a extrema-direita, está a mudar o centro de lugar, puxando-o para a direita. Neoliberais radicais passaram a ser vistos como moderados, social-democratas defensores da intervenção do Estado na economia passaram a ser vistos como extremistas.
A única coisa em que o Chega se moderará, é no que sobre da sua falsa agenda social. No resto, a sua capacidade de penetração é de tal forma eficaz que tenderá a radicalizá-la. Até deportar imigrantes fazer parte do satus quo. Já faz, em boa parte de uma Europa que, cheia de hipocrisia, se choca com Trump.
O papel do Chega e do conjunto da extrema-direita europeia é inclinar o chão político para, destruindo anteriores consensos sociais, criando novos, tornando central o que era excêntrico e excêntrico o que era central. Não é chegar ao poder. É fazer com que o poder fique parecido com eles. E, de caminho, tornar obsoleta a agenda social da esquerda. Por isso sempre contaram apoio a elite económica: são o sistema com luvas de boxe.
Está enganado quem trata Ventura como um “palhaço”. É dos mais eficazes líderes da extrema-direita europeia. O calcanhar de Aquiles é a sua ilusão de autossuficiência, típica dos autoritários: é raro deixar brilhar mais alguém, não permitindo que o partido ganhe massa crítica. O que faz dele o segredo e o problema da extrema-direita portuguesa. Mas não haja ilusões: se não houvesse Ventura, havia outro. É o ar dos tempos.»
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