4.12.24

SNS: não é programa, é encomenda

 


«A AD apresentou-se a eleições com três bandeiras: descer os impostos, com especial incidência para o IRS; pacificar as carreiras especiais do Estado; e um plano de emergência na Saúde. Se, no caso das carreiras, a coisa foi avançando, dando uma lição ao PS e destapando, o resto foi engodo. A descida do IRS era a que Costa e Medina já tinham aplicado no Orçamento de Estado em vigor com mais uns pozinhos para os mais abonados. Na Saúde, continuaram os problemas, agravados por uma ministra que semeia instabilidade à sua volta.

O governo só se pode queixar das expectativas que criou. Andou a vender que resolveria as principais carências com um plano de emergência, centrado na resolução dos problemas das urgências no verão e chocou com a realidade: o número de urgências fechadas aumentou, especialmente na obstetrícia, 40% face a 2023. As primeiras declarações triunfantes sobre a recuperação acelerada da lista de cirurgias foram desmentidas pelo próprio governo, assim como os números do orçamento da Saúde foram desmentidos pela própria ministra.

O que não resulta de medidas que já estavam planeadas ou em curso desvia fundos públicos para prestadores privados. É a lógica de complementaridade que o PSD tenta, há três décadas, inscrever nas leis de bases da Saúde e Educação. O problema é que a escassez de profissionais nas áreas mais críticas também atinge o privado, que recorre, essencialmente, aos mesmos profissionais que o SNS.

A direita costuma falar de preconceitos ideológicos. Mas a fantasia de que se resolvem os problemas mais urgentes recorrendo à crescentes contratualização com os privados é, ela sim, puramente ideológica. Todos os países desenvolvidos, seja qual for o seu modelo, estão sob a pressão de duas dinâmicas: envelhecimento da população e um desenvolvimento tecnológico que, ao contrário de outros setores, leva a aumentado de custos.

O FORNECEDOR TEM SEMPRE RAZÃO

Apesar do choque rápido com a realidade, não há crise de fé. Pelo contrário. Num intervalo de três dias, ficámos a saber que o governo pretende oferecer aos prestadores privados a possibilidade de escolherem os pacientes que querem atender em duas áreas chave da Saúde: nas listas de espera para as cirurgias e na gestão privada das novas Unidades de Saúde Familiar – modelo C (USF-C).

No primeiro caso, a publicação em Diário da República indica que os privados “selecionam os utentes a intervencionar”no âmbito da “resolução das listas de espera cirúrgicas fora dos tempos máximos de resposta garantidos”. No caso das USF-C, o Expresso indica que, na portaria que está a ser ultimada pelo governo, consta a premissa de “escusa de inscrição de qualquer utente ou da sua manutenção na lista de utentes mediante requerimento fundamentado”.

É uma relação muito particular, esta que o governo quer que o Estado tenha com supostos prestadores de serviços. Nos dois casos, não são as necessidades do cliente, o SNS, mas os interesses do fornecedor, os privados, que estão no centro da decisão. O fornecedor tem sempre razão. Como estamos a falar de pessoas, de vida e de morte, é um pouco mais grave do que a inversão da ordem normal em qualquer relação comercial.

Ouvido pelo Expresso, Pedro Pita Barros, economista da saúde, afirma que a escusa de inscrição ou de manutenção do inscrito “abre a possibilidade de ‘seleção de bons utentes’, recusando os que possam ser de risco ou acarretem um custo mais elevado”. A questão é exatamente essa. A concretizar-se, esta intenção viola grosseiramente os princípios da universalidade no acesso aos cuidados de Saúde.

EURICO: PLANEADOR, FISCALIZADOR E AMIGO

E para ter a certeza que nada falha, a monitorização do Plano de Emergência do governo, garantida pela Ordem dos Médicos, é feita pelo principal autor do mesmíssimo plano. O “conflito de interesses” é tão óbvio que centenas de médicos assinou uma carta para o bastonário da Ordem, denunciando a situação em que o fiscalizador escrutina a sua criação.

Não é de hoje a relação promiscua entre a Ordem dos Médicos e o PSD. O seu último bastonário, que manteve uma guerra sem quartel com o anterior governo (incluindo durante a pior pandemia em um século) saltou do cargo para deputado do PSD (o anterior está à frente da Câmara de Coimbra). Isso explica como é que a Ordem dos Médicos chumbou a proposta de criação de uma especialidade de medicina de urgência, quando foi proposta pelo anterior governo, e deu luz verde à mesmíssima proposta quando foi apresentada pelo executivo liderado por Montenegro.

Com Eurico Castro Alves a passamos, no entanto, para outro nível. O médico lidera a Ordem dos Médicos no Norte, de onde saíram o novo diretor executivo do SNS e a secretária de Estado da Saúde. A sua empresa já deu trabalho tanto à ministra como à secretária de Estado. Para lá de fiscalizar o plano de emergência para o SNS de que foi destacado autor, preside à secção Norte da Ordem, à Mesa da Santa Casa do Porto e ao Hospital da Prelada, pertencente à Misericórdia. Por coincidência, uma das primeiras medidas deste governo foi estabelecer um acordo, no valor de 65 milhões de euros, com... o Hospital da Prelada.

Também por coincidência, Luís Montenegro passou as suas férias de verão numa fazenda no Brasil, propriedade do mesmíssimo Eurico Castro Alves. Partindo do princípio óbvio de que se trata de um amigo próximo da família (ou estaríamos perante uma oferta ilegítima a um primeiro-ministro), há mais uma razão para pôr fim à acumulação de conflitos de interesses em torno da mesma pessoa. E quando a ministra cair – e vai inevitavelmente cair – é bom estarmos atentos à lista de contactos daquele que parece ser o ministro sombra.»


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