5.12.24

Um dia olharemos para uma criança com um “smartphone” como se estivesse a fumar

 


«Segundo um estudo do Quostodio, tendo como objeto 400 mil famílias de Espanha, EUA, Reino Unido e Austrália, os menores entre os 4 e os 18 anos passam, em média, quatro horas por dia em frente aos ecrãs. Dois meses do ano. Horas que nunca mais se repetirão no seu desenvolvimento cerebral e físico. Definitivamente perdidas e irrecuperáveis. Perdas que deixarão mazelas irreversíveis. Porque nós, os seus pais, somos coletivamente negligentes. Talvez por estarmos tão viciados como eles, não conseguimos cortar-lhes a droga. Talvez porque essas horas nos tirem peso de cima. Talvez por ignorância.

Não é por acaso que os pais de Silicon Valley procuravam (pelo menos em 2018) escolas com acesso limitado a tecnologia e contratam amas que se comprometem a não deixar os seus filhos usar telemóveis. Sabem o que produzem. Nós, menos avisados, deixámos que se viciassem e, agora, não fazemos ideia o que fazer com o mal que permitimos. Droga e vício não são metáforas. É mesmo um vício, é mesmo uma droga.

Matilde Sobral e Mariana Reis, fundadoras da Associação Mirabilis Portugal, explicaram-no aqui no Expresso: “Como as drogas leves e pesadas, o álcool ou as apostas a dinheiro, também o consumo abusivo de ecrãs provoca libertação de quantidades excessivas de dopamina. Ainda que a dopamina seja um neurotransmissor necessário para a sobrevivência, caso circule em excesso no nosso cérebro, repetidamente, pode causar dependência. A dopamina em excesso é o fator subjacente a todos os vícios. E os ecrãs interativos, pela forma como estão desenhados, provocam libertação desequilibrada de dopamina, tal como as outras drogas.”

Marc Massip compara os smartphones à heroína porque, quando ela surgiu, também se desconheciam os seus riscos. Como sabe quem tem filhos adictos ao telemóvel (ou é adicto), até existe a síndrome de abstinência. Mas continuamos tão a leste da dimensão do problema que a proposta do psicólogo espanhol, que defende que não se tenha estes aparelhos até aos 16 anos, até o cérebro estar suficientemente desenvolvido para lidar com ele, nos parecerá lunática.

Estamos a léguas disto. Mais de 60% das crianças portuguesas recebe o primeiro telemóvel entre os 10 e os 12 anos. E a partir dos 13 ou 14 anos, praticamente todos o têm. 15%, mais do que um. Não vale a pena continuar a fazer a comparação com o passado e o que se dizia sobre a televisão. Os smartphones e tablets estão sempre disponíveis;permitem uma interação que leva ao vício e dão à criança o controlo do que querem ver, evitando o tédio.

A LISTA DAS MAZELAS

Não se ensina uma criança a gerir um vício. Porque lhe faltam capacidades de gestão dos seus impulsos. Ter um tempo no dia em que os telemóveis estão inacessíveis é a forma de a ensinar a gerir a frustração e a ansiedade, levando-a a descobrir outras formas de divertimento. Coisa que inevitavelmente acontecerá. A mais antiga de todas: interagirem entre si, expressando emoções com o instrumento que naturalmente temos para o fazer (o corpo), reforçado lanços empatia. Serem, enfim, seres humanos. Isso também se aprende. E não se aprende no meio de zoombeis virados para ecrãs, perdendo capacidades indispensáveis para animais gregários como nós.

A Sociedade Portuguesa de Neuropediatria fez a lista de efeitos da utilização precoce de ecrãs: aumento do tempo em atividades sedentárias, com limitação do desenvolvimento motor; dificuldade em focar a atenção, gerir adversidades e enfrentar o tédio (reduzindo a criatividade), o que aumenta o risco da hiperatividade e défice de atenção; redução do tempo de interação com adultos e outras crianças, com riscos para o comportamento social e atraso na linguagem; perda de qualidade do sono; e aumento do risco de se sentir fisicamente inferior, com o aumento do risco de perturbações do comportamento alimentar, depressões e ansiedade. Deixo de fora o cyberbullying ou acesso fácil a pornografia, numa idade em que ela não é compreendida pela criança. Acho, aliás, delicioso ver pais que temem as aulas de educação cívica e dão telemóveis aos seus filhos. Confiam mais em algoritmos de empresas do que num professor.

Como escreveram, neste jornal, as duas fundadoras da Associação Mirabilis Portugal, “não há uma única atividade necessária ao desenvolvimento do cérebro que precise de um ecrã.” É por isso que a SPN recomenda que não se usemecrãs até aos 3 anos, exceto para videochamadas (excluindo a televisão, na presença de adulto e para conteúdo adequado, até à meia hora diária). Entre os 4 e os 6 anos, o uso deve ser limitado a meia hora de programação de alta qualidade, na presença de adultos e sem controlo da mudança de canais ou vídeos. Entre os 7 e os 11 anos, uma hora por dia. E entre os 12 e os 15, duas horas, com cautelas várias. Redes sociais? Só depois dos 16. Em nenhum caso ou idade, se deve usar para resolver problemas de comportamento, seja para comerem ou não fazerem birras. Nunca à refeição. Nunca no quarto. Perante estas recomendações, ainda discutimos se miúdos do terceiro ciclo podem dispensar smartphones sempre disponíveis, na escola.

COMEÇAR NA ESCOLA

Mas olhemos para o copo meio cheio. O facto do livro de Jonathan Haidt, “A Geração Ansiosa”, ser um best-seller diz-nos que as pessoas começam a perceber que estão a fazer qualquer coisa incrivelmente errada. E a razão porque me tornei obcecado pela proibição dos telemóveis na escola é por achar que podemos, enquanto sociedade, ajudar as famílias ultrapassar esta fase inicial de correção do primeiro impacto. Cinco ou seis horas por dia sem ter acesso ao telemóvel é a primeira cura de privação, a primeira oportunidade para viverem parte do seu tempo sem esta droga. E para redescobrirem tudo o que precisam para virem a ser adultos.

Será a partir da escola que se determinará o que serão aquelas pessoas enquanto adultos. É ali que se aprende a brincar e brincar é a preparação para coisas sérias. Nas escolas, os telemóveis substituem a formação das primeiras amizades, o exercício físico, as conversas, a socialização, aprendizagem de gestão de conflitos, o tédio. Tudo o que é necessário para a infância e a adolescência prepararem a vida adulta.

Claro que a escola não pode ser um espaço anacrónico, onde a tecnologia está interdita. Mas a tecnologia, a que a escola garante a todos, deve ser usada quando é necessária, fazendo aquilo que a escola faz: pedagogia. Nenhum miúdo deixa de aprender a usar novas tecnologias por não estar sempre com um aparelho ao lado. A escola não pode ser uma bolha no quotidiano de crianças e jovens, mas também não pode ser a repetição do que os pais fazem de errado. Por isso, mesmo que haja crianças que só comem porcaria em casa, a escola só deve ter disponível alimentação equilibrada, saudável e de qualidade. Porque a saúde também se educa, com a experiência. É isso que devia acontecer na relação com os telemóveis e os tablets.

COMEÇA A REAÇÃO

Os primeiros passos, ainda minoritários, começam a ser dados pelos pais. A pressão de vários grupos de pais já permitiu que, em Portugal, várias escolas públicas avançassem na interdição de telemóveis no terceiro ciclo. Mas não me parece que se tenha de esperar pelos pais. Também não se esperou por eles para decidir que alimentos se vendem nas escolas ou para proibir fumar. Há pais que foram mais longe. Para vencer a pressão dos colegas, que todas as gerações conheceram em tantas coisas, nasceu, no Reino Unido (onde 89% das crianças de 12 anos têm seu próprio smartphone), o movimento Smartphone Free Childhood, que lançou um pacto online: em cada escola, comprometerem-se a não dar smartphones aos filhos até aos 14 anos. Ainda é um movimento minoritário, mas 37 mil pais de 56 mil crianças que estão em oito mil escolas britânicas já o assinaram. Em vez do smartphone, dão-lhes um “tijolo”, para estarem contactáveis. Pelo menos sentem que não estão a condenar os seus filhos ao degredo.

Lamento se regresso recorrentemente a este tema. Não quero ensinar a educar. Não sou um ludista. Não vivo em pânico com cada geração será pior do que a seguinte. Apenas percebi, como milhões de pais já perceberam, que a nossa negligência coletiva pode ser responsável por uma geração menos preparada, dotada e empática do que as anteriores. Que isto terá efeitos sociais, culturais e políticos devastadores. E que, no entanto, isto é incrivelmente fácil de resolver. Basta aprender uma palavra mágica: “não”. Basta cumprirmos a nossa função. Ou, pelo menos, deixar que a escola cumpra a sua.»


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