6.1.25

O “entorse” da lei dos solos é a via verde para a corrupção

 


«Num dos primeiros episódios de “The West Wing” – ainda hoje a melhor série sobre política, logo depois de “Baron Noir” –, os responsáveis pela comunicação do presidente explicam como instituíram o “dia para deitar o lixo fora”. Agregam todas as notícias potencialmente nocivas para a sexta-feira, para serem publicadas ao sábado, “quando ninguém lê jornais”. O governo de Montenegro não terá o “dia do lixo”, mas a época festiva do natal e ano novo foi a oportunidade para apanhar o País menos atento. Temos, por isso, de ir revendo essa semana. Depois da nomeação Hélder Rosalino, já abortada, falta o novo Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial.

A alteração feita na lei permite a conversão expedita da classificação de solo rústico para solo urbano, onde se pode construir habitação. A medida já existia e fazia parte do simplex urbanístico aplicado pelo anterior governo, mas Montenegro alterou duas alíneas que fazem toda a diferença. A primeira é que a conversão só se aplicava à construção pública e passa a valer para tudo; a segunda é que tinha de ser em terrenos contíguos a áreas urbanas e a exigência passa a ser muito mais difusa. A primeira distinção abre uma autêntica via verde para a corrupção nas autarquias, a segunda alimenta o caos no já caótico ordenamento territorial. Note-se que as classificações dos solos não são eternas. Podem ser mudadas em PDM, com exigências de rigor e escrutínio bem maiores do que uma simples reunião de Câmara Municipal ou da Assembleia Municipal.

A valorização de um terreno rústico para um terreno urbanizável pode facilmente ser de trinta ou cinquenta vezes. Um terreno rústico sem licença de construção que valha 50 mil euros pode passar a valer, de um dia para o outro, com uma simples alteração numa reunião ordinária de Assembleia e Câmara Municipais, perto de milhão de euros. Basta uma breve consulta pelos terrenos em Alenquer, a poucas dezenas de quilómetros de Lisboa, para o confirmar. Escolho Alenquer porque é uma das autarquias (com gestão PS), que já veio defender a alteração legislativa.

Não é preciso acreditar em teorias da conspiração ou achar que todos os políticos são corruptos (nunca o achei) para perceber as expectativas criadas e antever pressões sobre os autarcas com a possibilidade de valorização súbita dos terrenos rústicos para fins imobiliários. O valor astronómico de um simples telefonema será a ocasião que inevitavelmente fará o ladrão. Incluindo os que vão comprar terrenos rústicos com essa expectativa. Simplificar essa reconversão facilitará estas ocasiões. Até porque temos um sistema perverso de financiamento autárquico que beneficia quem autorizar construção. Quanto mais e mais cara melhor para os cofres das câmaras.

CASTRO ALMEIDA SABE O QUE FEZ

A justificação do diploma indica que “a maior disponibilidade de terrenos facilitará a criação de soluções habitacionais que atendam aos critérios de custos controlados e venda a preços acessíveis”. Não por acaso, o Governo dispensa-se de exigir que as câmaras comprovem a inexistência no seu território de terrenos urbanizáveis, o que devia ser evidente para uma alteração que possibilita a construção em terrenos de Reserva Agrícola Nacional e até de Reserva Ecológica Nacional. O Governo não apresenta um número ou dado que comprove a falta de terrenos para construção. E não o faz porque não há falta de terrenos para construção em Portugal. Num país com dez milhões de habitantes, os Planos Directores Municipais têm previstos terrenos urbanizáveis com capacidade para 40 milhões de pessoas.

Resta o argumento do embaratecimento da construção. O Governo exige que 70% das casas sejam colocadas a “preços moderados”. Só que, no ponto 8 do artigo 72.ºB, “habitação de valor moderado” é a que não excede “125% do valor da mediana de preço de venda por metro quadrado de habitação para o concelho da localização do imóvel”. Ou seja, casas 25% mais caras do que as que são vendidas num mercado livre bastante aquecido são a definição de “preço moderado”. E os restantes 30% podem ser vendidos ainda mais caros. O governo permite às câmaras aceitarem a construção em área protegida para contribuírem para o aumento de preços. No meio, há quem veja os seus terrenos valorizarem-se em dezenas de vezes. É uma festa.

As cautelas semânticas e os dados escolhidos a dedo pelo ministro Castro Almeida provam que tudo isto foi deliberado e consciente. Num artigo publicado recentemente, o ministro fala várias vezes de preços “moderados”, mas nunca diz como lá chega. Em vez disso, usa os valores absolutos a que se poderá vender o metro quadrado em alguns concelhos: “A título de exemplo, o preço máximo em Braga será 1988€/m2, em Santarém 1661€ e em Évora 2328€. Manifestamente é uma lei anti-especulativa”. Indo ver os dados do INE para o segundo trimestre de 2024, em Braga, ficamos a saber que o metros quadrados foi vendido a 1631 euros e não os 1988 que a nova lei permite.

MOREIRA DA SILVA EXPLICA

Resta a segunda restrição abolida pelo Governo: a exigência que estes novos terrenos rústicos a urbanizar fossem contíguos ao perímetro urbano. O novo diploma defende apenas a “consolidação e a coerência da urbanização a desenvolver com a área urbana existente”. O carácter contíguo dos terrenos é um critério objetivo, a coerência e consolidação da nova organização é subjetivo e manipulável. Ao acabar com essa limitação, permite-se a construção em áreas protegidas e a dispersão quase ilimitada dos perímetros urbanos.

Tudo ao contrário da densificação urbana necessária, dificultando a gestão de áreas vitais como saneamento, aumentando exponencialmente os custos de manutenção das infraestruturas, atirando as pessoas para horas intermináveis nos movimentos pendulares casa trabalho. Ao dispersar as pessoas pelo território limita-se, ainda mais, a capacidade de resposta dos transportes públicos, aumentando ainda mais dependência do automóvel na deslocação para o trabalho. É o modelo Los Angeles.

Esta modificação vai no sentido oposto aos propósitos certeiros da “Lei dos Solos”, aprovada pelo PSD em 2013, que limitava os instrumentos para a sua correta aplicação. A explicação de Moreira da Silva, na apresentação da lei, clarifica o que estava em causa e agora se perde: “O foco do desenvolvimento do território estará na regeneração dos aglomerados urbanos já existentes. São regulamentados novos instrumentos de gestão do território e assegura-se que a expansão urbana apenas ocorrerá quando o aglomerado urbano se encontre esgotado face a novas necessidades”.

O ENTORSE DO PR, O SILÊNCIO DO PS E DO CHEGA

Nos termos em que promulgou o diploma, no dia 26 de dezembro, foi o próprio Presidente da República que ligou as sirenes, dizendo que a alteração cria “um entorse significativo em matéria de regime genérico de ordenamento e planeamento do território” e que apenas passa o crivo de Belém por causa da “urgência no uso dos fundos europeus”. Não sei se é mais extraordinário o Presidente colocar a sua assinatura num “entorse significativo” ao ordenamento do território, se justifica-lo com a urgência de ter casas prontas em 2026 com diploma que interfere apenas com a aquisição de terrenos para construção.

Há muito tempo que estão identificados os projetos para as 26 mil casas construídas ou a reabilitar pelo PRR. O Presidente da República insulta a inteligência dos portugueses se acha que alguém acredita que, em dois anos, se faz o projeto de arquitetura e o de especialidades, se lança concurso público de empreitada e ainda se constrói um prédio que seja. Não há uma única casa que esteja pronta em 2026 se, menos de dois anos antes, ainda nem tem terreno. Os fundos europeus começam a ter as costas largas para tantos atalhos.

Bloco, Livre, PCP e PAN pediram a apreciação parlamentar do Decreto-Lei, para obrigar à sua discussão, votação e possível chumbo pelos deputados. Tirando os partidos do governo e uma IL que é contra todas as formas de regulação, destacam-se duas ausências nesta lista: o Chega e o PS.

O Chega, partido que vê corrupção em todo o lado menos quando é atropelado por ela, depende do financiamento de vários promotores imobiliários que neste momento esfregam as mãos de contentamento. Não ouviremos uma palavra sua. Nunca ouvimos, quando se fala de risco real de corrupção.

Mas o PS também está calado, apesar das objeções de Helena Roseta e de todos os partidos à sua esquerda. Depois das hesitações, no episódio Ricardo Leão, começa a ficar a sensação que os autarcas, ansiosos por participar na festa que financia as autarquias, mandam no partido. Veremos se se confirma que o PS se prepara para fazer em autarquias com maior pressão especulativa o que fez em Lisboa: alimentar o monstro que expulsará das cidades os seus próprios eleitores. Quanto ao País, ganha zero com esta mudança.»


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