23.3.25

A chocante revolução cultural dos EUA

 


«Há quem diga que a guerra civil nos Estados Unidos já começou ou, ainda, quem diga que a Terceira Guerra Mundial também já começou. Nenhuma destas duas convicções me parece muito disparatada.

Nos EUA, o conflito da Administração Trump com o poder judicial é exuberante e cada dia se aproxima mais de um choque aberto, que se irá materializar numa desobediência assumida do Presidente a decisões judiciais. No caso das deportações dos alegados membros de um gang criminoso da Nicarágua, efectuadas à margem da lei e que o juiz James Boasberg tinha bloqueado, a Administração Trump ainda se procurou defender, pelo menos inicialmente, do facto de ter concretizado as deportações, alegando que a decisão judicial chegara tarde demais, quando os deportados já estavam no ar e não era possível o seu regresso. De seguida, foi recusada ao tribunal a informação respeitante ao voo, por ser considerada informação confidencial…

Aí, de alguma forma, a Administração Trump ainda procurou apresentar argumentos formais e processuais para encobrir a desobediência, mas, muito em breve, teremos uma desobediência clara com base numa posição assumidamente radicalizada quanto aos poderes da presidência. Embora Karoline Leavitt, a porta-voz da Casa Branca, tenha inicialmente, à volta da desobediência, procurado fazer uma distinção quanto ao valor legal das ordens verbais e das ordens escritas dos tribunais, Stephen Miller, chefe de gabinete da Trump e um conhecido partidário da linha dura quanto à imigração, não poupou nas palavras ao afirmar que os tribunais não têm quaisquer poderes para restringir as actividades do Presidente, na prossecução da política externa dos Estados Unidos no âmbito do Alien Enemies Act. Miller declarou expressamente: “Este juiz violou a lei. Violou a Constituição. Desafiou o sistema de governo que temos neste país.”

Apoiado ou mesmo blindado na decisão proferida no caso Trump v. United States (2024), que lhe deu uma amplíssima imunidade criminal, Trump não hesita em procurar o confronto com o poder judicial, tendo classificado o juiz James Boasberg como um juiz de Obama, lunático e de extrema-esquerda que deveria ser afastado (impeached). As palavras de Trump levaram a que John Roberts, o juiz presidente do Supremo Tribunal – que foi o juiz relator no caso Trump v. United States (2024) –, tenha feito uma, pouco habitual, declaração pública em que, embora não referindo o nome de Trump, lembrou que, quando não se concorda com uma decisão judicial, não se pede o afastamento do juiz, recorre-se. Trump já respondeu, agravando o confronto, e a Administração Trump já iniciou o processo legal para afastar o juiz.

Mas o terramoto norte-americano não atinge só as questões político-constitucionais ou geopolíticas, já que são valores básicos da chamada "civilização ocidental" que estão em causa com a revolução trumpiana que vale a pena ler à luz de Mao Tsetung, como sugere Jorge Almeida Fernandes.

Acompanhar a alucinante coreografia de Elon Musk no palco norte-americano e mundial não é agradável, mas é bem esclarecedor da desumana revolução cultural que se está a viver nos EUA. Numa entrevista de três horas, com o podcaster Joe Rogan, embora Musk tenha declarado que nos devemos preocupar com os outros, afirmou expressamente que “a fraqueza fundamental da civilização ocidental é a empatia, a exploração da empatia”, que terá sido transformada numa arma pelos pobres, pelos imigrantes nomeadamente explorando “um bug na civilização ocidental”. Entre outras coisas, Musk esclareceu que considera a Segurança Social uma espécie de esquema Ponzi, seguramente prefigurando os cortes que ambiciona vir aí a efectuar.

Como é fácil de descortinar, como pano de fundo do pensamento de Musk e de muitos bilionários e políticos da entourage de Trump, há a convicção de que são seres superiores às pessoas comuns, que, na prática, os exploram e à sua riqueza ao beneficiarem de apoios do Estado, tais como as pensões.

Nesse aspecto, vale a pena acompanhar a evolução do projecto das Freedom Cities apresentado pela elite tecnobilionária como uma solução urbanística e política, miraculosa para o desenvolvimento e promoção da liberdade económica, através do afastamento das intervenções regulatórias do Estado nessas novas “cidades da liberdade”. No entanto, na prática, mais não seriam do que cidades sem democracia, controladas pelos tecnobilionários, fora das leis norte-americanas, “um neofeudalismo” e “um plano para acabar com o conceito de cidadania e fazer de cada trabalhador um servo cuja vida inteira é controlada pelos caprichos do seu patrão”, nas palavras de Armanda Marcotte, na revista Salon. A realidade quer ultrapassar o visionário George Orwell.»


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