«Durante 48 anos, uma das obras da Censura foi demonizar a política, a ideologia, a diferença de ideias e o seu confronto. Tudo aquilo que Salazar considerava dever ser poupado aos portugueses para seu bem-estar e impedir “excitações”. Era melhor glorificar o chefe e a ordem natural de quem manda, seja no Estado, seja na Igreja, seja na academia, seja em todas as instituições, seja naquelas que, em particular, tinham fardas. Fardas para os de cima e fardas para os de baixo, dos senhores aos criados de mesa, os contínuos, os bedéis.
Esta herança maldita está cá e basta haver um momento de maior confronto político, de preferência aos olhos de todos no Parlamento, e logo uma onda de indignação se levanta a favor dos bons costumes, dos salamaleques, da pomposidade. Na verdade, as democracias, até pela maior exposição pública dos seus actos e pelo confronto aberto que lhe é natural, não são bacteriologicamente puras, não participam no chamado “fascismo higiénico” das ditaduras, são, no limite da liberdade de expressão (sim, também está em causa), “mal-educadas”, e é por isso que parecem, aos olhos de 48 anos de censura interiorizada, uma “balbúrdia”. Até o absurdo exemplo, tirado ipsis verbis da propaganda do Estado Novo, da desordem da I República emergiu nestes dias.
Na verdade, é não só no discurso hipócrita dos políticos, mas também na imediata aceitação de lugares-comuns ignorantes no jornalismo, que a censura manda nas cabeças. A hipocrisia tem um enorme papel porque, fazendo aquilo que vêm logo a seguir considerar um “mal”, cobrem tudo por uma linguagem estereotipada que transmite essa mesma hipocrisia.
1) “O espectáculo deprimente da Assembleia” é um remake do que aconteceu na eleição do presidente da Assembleia. Não, o espectáculo da Assembleia só é “deprimente” porque assenta num discurso hipócrita de todos, que batem e escondem a mão, e os jornalistas e comentadores repetem as classificações censórias e demonizadoras do confronto.
No caso da actual discussão da moção de confiança, bate-se no peito com a “vergonha” da negociação, a “barganha” que aconteceu no Plenário e, eventualmente, fora dele. E depois? Qual é o problema de, no meio de uma crise política, haver este tipo de confrontos, truques, coreografias? Lamento dizer, mas em democracia é assim.
2) Mil e uma vezes se deve repetir que os parlamentos são assim em todas democracias, entre apartes e insultos e má educação. O Chega apenas generalizou e agravou o vocabulário dos insultos, e o efeito de matilha, mas eles estiveram sempre lá, mesmo que não cheguem às actas, sempre com o maior cuidado expurgadas dos chamados “apartes”. Deve haver punição aos insultos pessoais? Sim, quando o seu conteúdo é soez e visa pessoalmente o deputado A e B, e, no caso do Chega, atingirem mais as mulheres do que os homens, porque eles são muito machos e gostam de o mostrar. A linha entre uma interpretação extensiva da liberdade de expressão (que é a minha) e as actuais “linhas vermelhas” censórias implica sempre o maior cuidado com a defesa, mesmo com nojo, da primeira.
3) Mas o insulto puro, obsceno, dirigido à pessoa, como nalguns casos, indo até à agressão física, deve ser punido. A melhor maneira de punir os abusos deste tipo é ir ao dinheiro. É introduzir uma pena sancionatória nos salários, que os deputados prevaricadores pensam duas vezes no seu bolso, que é uma coisa com que pensam sempre. Se for preciso mudar o estatuto dos deputados, é por aí que se deve ir.
4) “A ministra decidiu por ideologia”, foi dito várias vezes a propósito de decisões da anterior ministra da Saúde. E depois? Esta frase implica duas coisas: uma, a de que uma decisão por política ou ideologia é menor, com o subproduto de esconder que outras decisões “do outro lado também o são”; dois, que a essência de governar é tecnocrática e de que há soluções “superiores” à ideologia por serem “técnicas”.
5) “Ninguém quer eleições.” Sim, ninguém quer, a começar pelos eleitores. E aqueles que querem têm de disfarçar e jurar que não querem. Mas as eleições podem ser o processo saudável e democrático de resolver impasses políticos, embora sem a garantia de que seja assim. No caso actual, o coro político-mediático quase dá a entender que as eleições são algo de indesejável em si, toleradas nos prazos previstos, mas maléficas quando se chega lá pela conflitualidade democrática.
Nos dias de hoje, com a crise actual, todo este discurso serve as candidaturas populistas, seja para as legislativas como as presidenciais, e mostra uma incompreensão profunda do que é uma democracia na sua natural imperfeição. É também por ser imperfeita que é democracia.»
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