7.5.25

Deportações na campanha e o ar de um tempo trágico

 


«Usando a câmara subjetiva e olhando do ponto de vista da personagem, vemos as pernas de alguém deitado numa cama do que parece ser um quarto de motel. Faz zapping numa televisão. Na tela, sucedem-se intervenções vigorosas de responsáveis políticos anunciando a deportação de imigrantes. Subitamente, ouve-se um feroz bater na porta, anunciando a guarda fronteiriça. Toda a cena transmite um ambiente opressivo de medo. Subitamente, a nota de humor. No telemóvel, toca: “take me home to the place I belong ..." ("Country Roads", de John Denver). O vídeo da Border Patrol (CBP), que junta aos piores instintos uma nota de humor negro, é o resumo do neofascismo no tempo das redes. Assim seria a propaganda do passado se tivesse estes instrumentos virais.

Aparentemente, as deportações também rendem votos por cá.

Não há qualquer novidade nas ordens de expulsão anunciadas pelo ministro António Leitão Amaro no último fim de semana. Como já várias pessoas assinalaram, até são inferiores, em número, a vários anos do governo do PS, assim como, nos EUA, Biden e Obama deportaram, e não foi pouco. Como explicou Manuela Niza, presidente do Sindicato dos Técnicos de Migração, estamos perante uma "não notícia", já que estas notificações acontecem, sem qualquer anúncio público, desde 2007. E este nem sequer foi o ano mais ativo. Aquilo a que assistimos é, no que se tornou um padrão de um executivo dominado pela propaganda e pelas perceções, fazer-se passar por ação política procedimentos quotidianos da administração pública.

O que mudou é estas ordens de saída serem anunciadas, num arranque de campanha, como bandeira política e em celebração, contribuindo para a demonização dos imigrantes. Fazendo um paralelo com a segurança, há uma diferença entre o político que anuncia a diminuição do crime e o que se vangloria de ter aumentado o número de reclusos. E uma ainda maior se o fizer no meio de uma campanha eleitoral. Sabemos a que instintos pretende responder.

Ainda sou do tempo em que lamentávamos não conseguir segurar imigrantes, que fugiam para outros países europeus. Se continuarmos a repetir a performance económica do primeiro trimestre deste ano, esses tempos regressarão. Há muito mais imigrantes do que na altura, mas estamos próximos do pleno emprego, temos falta de mão de obra nos setores que estes imigrantes procuram, precisamos deles para garantir a sustentabilidade da segurança social, são responsáveis pelo repovoamento de várias zonas do interior e foram eles que travaram a nossa gravíssima crise demográfica.

É claro que precisamos, como em quase todos os domínios económicos e sociais, de regulação. Mas, com uma "via verde" direcionada a grandes obras e empregadores que se concentram na mão-de-obra temporária, e sem um grande reforço dos depauperados consulados, o fim da manifestação de interesses deixa um vazio. Quando acabar o processo de regularização de todos os que esperavam, os que entrarem aqui sem ser pela via demasiado estreita que se manteve aberta ficarão no limbo de uma ilegalidade impossível de ultrapassar, o que rapidamente se tornará num problema. Responder às exigências dos grandes empregadores não chega o essencial do nosso tecido empresarial e económico. Foram apenas os únicos que conseguiram se fazer ouvir junto do governo.

É evidente que a gestão da transição do SEF para a AIMA foi péssima, com boicote interno e incompetência externa. Mas não vislumbro qualquer estratégia no espalhafato deste governo. Segundo o DN, há quase 10 meses que o portal de renovações online da AIMA deixou de funcionar, impossibilitando milhares de imigrantes documentados a terem sua situação regularizada. Debater isto não dá votos porque os imigrantes não votam.

O que vislumbro é uma mudança política que resulta da transformação, aqui, em toda a Europa e nos Estados Unidos, dos imigrantes em bode expiatório de um processo de globalização que não distribuiu ou garantiu a mesma prosperidade do passado. E isso, mais do que nas políticas, nota-se no discurso sobre a imigração, vista como problema por um eleitorado ansioso e assustado, num continente em perda e sem lideranças políticas. Chegou a Portugal quando nos aproximámos da média europeia – mesmo os números são difíceis de debater, quando o governo os usa para pouco mais do que propaganda.

GANHA O ESPECIALISTA NO FILÃO

Um dia depois de Pedro Passos Coelho voltar à campanha de Luís Montenegro, é interessante recordar o choque com a intervenção que fez há um ano sobre imigração e verificar como o discurso mainstream mudou radicalmente desde então, tornando o que disse absolutamente aceitável. Ao ouvir o debate sobre o tema, os únicos partidos a falar como falava o antigo mainstream são os mais à esquerda. Nesta matéria, o PS está entalado entre o mau trabalho administrativo do governo de António Costa e o temor eleitoral de Pedro Nuno Santos. E o seu discurso sai confuso.

Melhor esteve o Presidente da República, que, perante este anúncio, deixou uns lembretes, no que seria a intervenção habitual dos partidos do centro, PSD incluído. Não sabendo ao certo quantos imigrantes temos nem quantos a nova lei deixará fora da regularização, recordou três coisas óbvias: que não devíamos ter estado " três anos sem tratar desta matéria", deixando milhares de processos pendurados; que o contributo dos imigrantes é transversal e que, sem eles, haveria "um colapso da economia portuguesa"; e que a expulsão "é sempre penosa" para quem é expulso, até porque não cumprir os requisitos não é sinónimo de ser criminosos. Ou seja, consciência dos erros administrativos, da importância económica da imigração e de valores básicos de humanidade, não usando a expulsão de pessoas que, como fizemos no passado, procuram uma vida melhor como vantagem eleitoral.

As deportações sempre aconteceram, porque são inevitáveis. O que mudou é serem anunciadas, num arranque de campanha, como bandeira e em celebração. O problema já não é o crescimento do Chega. É, como sempre disse, o contágio. A rampa deslizante será íngreme em toda a sociedade. Os partidos do centro limitam-se a respirar bem fundo o ar do tempo. E o ar do tempo é o do medo e da xenofobia. Não é por acaso que os ataques de Montenegro ao Chega são apenas à sua imprevisibilidade e falta de sentido de Estado. O resto veio para ficar.

No Reino Unido, como em muitos países europeus, os conservadores aproximaram-se da extrema-direita (até na linguagem) para a tentar travar. O efeito de normalização só desequilibrou ainda mais a balança. Não só foram derrotados, como a extrema-direita continuou a crescer.

Em Portugal, se vier uma crise económica (são cíclicas e o contexto externo não é animador), é expectável que os imigrantes, agora muito mais numerosos, venham a ser, como em todo o lado, o bode expiatório. O ambiente político que está a ser alimentado tornará isso ainda mais fácil. A direita tradicional está a meter-se num barco que a levará a portos sinistros, onde encontrará a derrota. Tratar a imigração como um problema quando ela é a nossa tábua de salvação é preparar uma bomba-relógio que rebentará quando as coisas correrem pior. Nesse campeonato, só ganhará quem se especializou no filão. Como os conservadores britânicos estão a aprender.»


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