5.7.25

Os efeitos perversos do processo de Sócrates e outros “marqueses”

 


«Do modo como as coisas andam, mais vale prevenir do que remediar: toda a gente sabe que tenho a convicção da culpabilidade de Sócrates, durante muito tempo bastante sozinho, quando, mesmo no topo do PSD, houve quem o protegesse de ser condenado, por exemplo, pela interferência nos órgãos de comunicação social, quando foi objecto de uma Comissão de Inquérito que, pelos vistos, ninguém queria. Aí, assisti ao espectáculo degradante de ver uma parte da nossa elite política e económica, incluindo Sócrates e alguns dos seus “marqueses”, mentir sem qualquer pudor.

Essa convicção nem sequer se baseava nas escutas passadas à comunicação social, mas em declarações do próprio Sócrates sobre como movimentava dinheiro vivo “porque não tinha confiança na banca”, a história das marquises, e o único documento rasurado no registo da Assembleia, cujo original parece ter desaparecido. Como escrevi há muitos anos, dava-se um pontapé numa pedra maldita e lá aparecia a cabecinha de Sócrates. Mas essa minha convicção, sistematicamente atacada pelos órgãos socratistas nas redes, que continuam a existir, não é uma condenação em tribunal, por isso pouco vale.

Perante a Constituição, a lei e um dos fundamentos basilares da democracia, Sócrates é inocente até ser julgado justamente e ser considerado culpado. E não lhe cabe a ele provar que é inocente, mas ao Estado que o acusa provar que é culpado. A presunção da inocência é uma das seguranças de que vivemos num Estado democrático, e é um princípio básico contra os abusos do poder, mas, pelo visto, o procurador-geral da República não entende assim e fez uma declaração da maior e total gravidade: “José Sócrates merece uma oportunidade para provar a sua inocência.” Se há motivo para demissão, este devia bastar, porque reflecte, por parte de um dos mais altos representantes da justiça, não ignorância, mas vezo. Vezo, palavra que vem de vício, tem vários significados, todos aplicáveis: “modo repetido de agir ou comportar-se”, “propensão”, “reincidência”, e vezo é uma palavra que se aplica muito bem ao comportamento do Ministério Público.

Por exemplo, já sabemos o que justificava o parágrafo que derrubou Costa e se alguma diligência está em curso? Já sabemos que complexidade tem a questão da Spinumviva e se há diligências em curso? Ou se, não havendo nada, não havendo qualquer acção, está apenas à espera do esquecimento ou de um bom momento mediático para chegar à conclusão de que não havia nada, sem grande escândalo? E os estragos pelo caminho, pelos anúncios em momentos certos, pelas fugas de informação, pela evidente tentativa de condenar pela opinião pública quando não se consegue condenar em tribunal? Isto tem a ver com os “políticos”? Tem, mas os “políticos” são cidadãos de uma democracia e as leis que os condenam, e as que os defendem nos seus direitos, são as que nos protegem a todos dos abusos do poder.

Um outro efeito perverso da Operação Marquês é o caminho já demasiado aberto para limitar os direitos da defesa, meus, vossos, deles, a pretexto da litigância dos advogados de Sócrates, e das mais que uma centena de recursos que apresentou. Pois eu não troco a possibilidade de um eventual abuso de recursos de alguém que é suficientemente rico para arcar com as enormes despesas, entre advogados e custas, pela eliminação desses instrumentos de defesa com a ideia de que isso pode tornar os processos mais “expeditos”. Primeiro, por uma razão conjuntural, a principal explicação da morosidade do processo de Sócrates e dos outros “marqueses” deve-se aos erros, incompetências, contradições do lado da justiça, com relevo para o Ministério Público, que nos chamados megaprocessos actua com mais olhos do que barriga e, claro, faz asneiras, cria monstros que crescem ano após ano, penalizando os inocentes e ajudando os culpados à espera de prescrições. Dar-lhes mais poder e fragilizar a defesa é um prémio ao abuso, à incompetência e ao corporativismo justicialista.

O ataque à presunção da inocência é um dos instrumentos do populismo, e um instrumento eficaz. As cedências dos políticos democráticos feitos no útero partidário têm uma dupla razão: cobardia, e ignorância — uma combinação poderosíssima. Não foi preciso chegar o Chega com a sua justiça popular, sem lei nem direitos, a justiça da rua, para em muitos aspectos a presunção da inocência já estar abandonada, por exemplo, no fisco e nas repetidas tentativas anticonstitucionais de condenar o chamado “enriquecimento ilícito” invertendo o ónus da prova, ou possibilitando o confisco de bens antes de qualquer condenação judicial.

A democracia é sempre frágil, muitas vezes complicada e morosa, contraditória e com efeitos perversos, como estes de que estamos a falar, mas eu, que estou convencido da culpabilidade de Sócrates, quero que ele tenha o julgamento mais justo e limpo de abusos possíveis, sem limitação a nada de legal que o ajude a defender-se, desejo que esta minha convicção pessoal seja, em tribunal e perante a lei, apenas irrelevante.»


1 comments:

F.L. disse...

Todo este processo é ou parece ser como um queijo suíço, cheio de buracos.