«Henrique Gouveia e Melo esteve particularmente bem em quase toda a entrevista a Clara de Sousa. Digo “quase” porque continuo sem perceber para que serviu o almoço com Ventura. E a crispação do candidato perante a insistência da jornalista só reforça a ideia de que há, de facto, algo que precisamos de saber. Já lá iremos.
O almirante mostrou conhecer a Constituição, revelou-se moderado na interpretação dos poderes presidenciais e demonstrou uma visão equilibrada do que deve ser a vida em comunidade. Nada do que defendeu coloca os cidadãos uns contra os outros — nem sequer a crítica aos partidos que encaram as eleições presidenciais como “uma segunda volta das legislativas”. Ao ouvir Gouveia e Melo, percebe-se que ele é um eleitor típico do centro, que votou maioritariamente no PSD ou no PS ou, ocasionalmente, em forças próximas. Não ser do sistema não é o mesmo que ser anti-sistema.
A este propósito, diversos estudos têm mostrado um descontentamento crescente dos cidadãos com os partidos, divórcio que tem beneficiado quase exclusivamente o Chega. André Ventura é um produto do sistema que se apresenta como anti-sistema, mas o seu partido consegue imitar tudo aquilo que critica nos outros a um ritmo mais acelerado do que o seu próprio crescimento eleitoral — que, ainda assim, tem sido feito com grandes saltos. Mas não nos deixemos enganar, o Chega é instrumental no caminho traçado por Ventura.
É evidente que existem muitos eleitores desiludidos com a democracia e iludidos por vendedores de banha da cobra que, aqui como noutros lugares do mundo, prometem tudo a alguns e ameaçam castigar todos os outros que lhes fazem frente. Estes eleitores, cansados dos partidos, precisam de um espaço comum para se reencontrar e defender a democracia. Não se percebe, por isso, a má reação dos partidos - e da generalidade dos comentadores - a uma candidatura de um democrata como Gouveia e Melo, apenas porque esta não nasceu nos diretórios partidários.
Um país que, em cinco presidentes, teve quatro ex-líderes do PS e do PSD não pode estar condenado a escolher novamente entre um ex-líder do PS e um ex-líder do PSD. As presidenciais são eleições para as quais os partidos não são formalmente convocados; transformá-las num play-off partidário é fazer o jogo de Ventura, que, qual caudilho, já sonha com um regime presidencialista. É preciso dizer, no entanto, que a Constituição está mais próxima do modelo francês, com o qual sonha o Chega, do que do sistema italiano — onde é o parlamento que escolhe o presidente — defendido pelos restantes partidos.
Na eventualidade de uma segunda volta entre Gouveia e Melo e Ventura, espero que todos os que militam em partidos democráticos, começando pelos seus dirigentes, não hesitem um segundo em manifestar o apoio ao almirante. Se não o fizerem, estarão a revelar-se democratas de pacotilha, merecedores de toda a má sorte que têm sofrido. Da mesma forma, numa eventual segunda volta entre Ventura e um ex-líder do PS ou do PSD, espero que Gouveia e Melo não hesite em declarar o seu voto num desses candidatos, como já fez no passado.
PEDRA OU PALMILHA?
Ao parlamentarizarem estas presidenciais, ao criarem esta “obrigatoriedade” de ir às urnas testar a força de cada partido, encurralaram o Chega — mas o feitiço pode virar-se contra o feiticeiro. Percebe-se o pânico perante a possibilidade de uma segunda volta entre um candidato vindo de fora do sistema e um candidato que quer “fazer desabar o sistema”. Ver os candidatos do PS e do PSD ultrapassados pelo Chega na mesma eleição seria um abalo profundo.
Mais difícil de perceber é o almoço de Gouveia e Melo com Ventura, tendo Mário Ferreira como chefe de mesa. Depois de tudo o que Gouveia e Melo disse sobre o Chega — num esforço bem-sucedido para se livrar da fama de ser o candidato ideal para os eleitores de Ventura —, não se entende como o almirante caiu nessa esparrela. Do muito que disse Ventura sobre a procura de uma alternativa a si próprio e do pouco que disse Gouveia e Melo sobre o encontro, deduz-se que terá sido o líder do Chega a propor uma conversa para testar a hipótese de o partido apoiar o candidato sem partido.
Pelo desamor do Chega à democracia, pelo discurso suprapartidário do almirante — que não cola com o eventual apoio de Ventura — e por tudo o resto, este almoço ameaça transformar-se numa pedra no sapato da candidatura de Gouveia e Melo. A não ser que exista uma explicação mais plausível do que a que foi dada (a procura de possíveis intersecções). A única hipótese que encontro alimenta uma teoria da conspiração: o almirante teria tudo a ganhar com Ventura na segunda volta, pois seria eleito presidente com uma votação igual ou superior à de Eanes. Neste caso, Ventura não seria uma pedra no sapato, mas uma palmilha para deixar Gouveia e Melo mais confortável no pedestal reservado ao salvador da pátria. Venha o diabo e escolha, porque Ventura continuaria como figura central do sistema.»

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