8.10.25

Devemos ter medo de criticar o Ministério Público?

 


«Passados vários dias, a notícia da investigação do Ministério Público ao juiz Ivo Rosa ainda não gerou a indignação política expectável e a intervenção de quem deve zelar pelo regular funcionamento das instituições (o Presidente da República, a quem não basta pedir reflexões) ou da Assembleia da República. Tirando a reação corporativa e dos signatários do Manifesto dos 50, o mundo político manteve-se num quase total temeroso silêncio.

Esta ausência de reação é sintomática de um crescente afrouxamento do escrutínio democrático que nos dá o guião do que acontecerá quando vivermos alguma coisa semelhante ao que se passa nos Estados Unidos. É evidente que as nossas instituições democráticas soçobrarão em poucas semanas. O primeiro teste será quando a extrema-direita conquistar autarquias e tiver a oportunidade de exercer o poder.

Segundo a notícia da TVI, o Ministério Público recebeu uma denuncia anónima (que até pode ter vindo de dentro, porque se tornou um expediente fácil para escolher alvos) contra o juiz Ivo Rosa. A denuncia, pela sua falta de consistência, pela vacuidade e pelos termos, poderia ser um post de Facebook escrito por um troll. Na conclusão deste processo, três anos depois, foi reconhecida a total ausência de indícios, factos, substância, seja o que for.

A primeira pergunta é a mais básica: o que leva o Ministério Público a abrir um inquérito com base em coisa algumae a optar pela averiguação preventiva, de uma forma até pouco rigorosa, no caso Spinumviva? Qual é o critério?

Respondo, sem me pôr com falsas ingenuidades: considerar o juiz Ivo Rosa, que travou várias guerras com o DCIAP, um inimigo do MP. A decisão mais conhecida foi no processo contra Sócrates, mas não foi, longe disso, a única. Como, para a cultura antidemocrática e perigosamente populista que parece dominar crescentemente a cúpula do Ministério Público, quem discorda do seu ponto de vista ou é corrupto ou amigo de corruptos, o juiz Ivo Rosa só poderia estar a receber de alguém. Mesmo que nada o indicasse. Esta é a minha versão benigna. A que me parece mais plausível é pior: a cúpula do Ministério Público quer intimidar os juízes.

A partir de uma denúncia anónima sem substância, o MP teve acesso à faturação detalhada do telemóvel de Ivo Rosa para ver com quem falava, recolheu a sua geolocalização para saber onde e com quem tinha estado e levantou o seu sigilo fiscal e bancário. O juiz foi seguido e vigiado pela Polícia Judiciária pelo país.

Esta absurda investigação, usando os escassos recursos do Estado, durou três anos. E este foi o terceiro inquérito, sempre com o mesmo resultado, aberto a Ivo Rosa, porque se atreve a ser, no cumprimento das suas competências, mais do que escrivão do todo-poderoso Ministério Público. Apesar da regra fundamental da “irresponsabilidade” dos juízes”, única que garante a sua independência, o cerco a Ivo Rosa, usando instrumentos do Estado pensados para combater o crime, tem sido permanente.

Esta operação foi autorizada por um procurador e por um juiz desembargador de que temos o direito a conhecer os nomes. Mas a PGR está empenhada em manter-nos às escuras (o escrutínio teria obviamente de manter sigilosa a informação privada do juiz).

A ligeireza com que se recorre a métodos invasivos sem base mínima que o justifique seria sempre grave. Como foram graves as escutas a João Galamba, durante quatro anos, a ver o que podia aparecer. O Ministério Público investiga suspeitas de crimes que possam ter sido cometidos por uma ou mais pessoas, não investiga uma ou mais pessoas para ver se cometeram algum crime. Isso fazem ditaduras aos seus opositores.

Mas isto, feito a um juiz que toma decisões com as quais o MP discorda, é ainda mais grave do que o que aconteceu com Galamba. E os direitos de Ivo Rosa, por mais relevantes que sejam, até são a questão menor. Assistimos, neste caso, a um golpe dentro da justiça. Ao que parece ser um processo de perseguição de um magistrado que até pode servir de exemplo para os demais, antes de tomarem decisões que contrariem os desejos do MP.

É evidente que a cúpula do MP está de rédea solta, comportando-se como um Estado dentro do Estado. Não se trata de mais um episódio lamentável na nossa justiça. É um caso com tal gravidade, que obriga a uma intervenção urgente para repor a normalidade num Estado de Direito Democrático. Imaginem isto banalizado com um PGR nomeado pelo Chega. Nem precisavam de se preocupar em escolher juízes.

Se um juiz pode ver a sua vida devassada por tomar decisões contrárias à vontade dos procuradores, todos temos razões para ter medo do Ministério Público, estando inibidos de criticar e escrutinar uma instituição do Estado. O que significa que esta cúpula do MP se está a transformar num perigo sério para a democracia e para o Estado de Direito.»


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