«Na noite das eleições autárquicas, liguei a RTP Notícias e, a dado momento, dei por mim a deixar de ouvir realmente o conteúdo das intervenções do comentariado político-partidário presente no estúdio, mas antes a forma, previsivelmente entediante, com que todos se proclamavam vencedores, celebrando com regozijo as derrotas dos adversários. Parecia um concurso televisivo cuja única regra era: “Digam o que disserem, mas façam com que pareça que ganhámos a taça.” Um número de contorcionismo (in)digno do Cirque du Soleil.
Que me perdoe quem tem expertise em física quântica pela (des)apropriação científica, mas lembrou-me o gato de Schrödinger: simultaneamente morto e vivo, e cada um assegurava ter aberto a caixa relatando o que vira em relação ao seu partido. O seu gato estava vivíssimo; o do adversário, morto. Esquecendo o essencial: o gato no interior da caixa não deveria ser o partido, mas as pessoas que os partidos dizem representar e cuja vida afirmam pretender melhorar.
Vários dias depois, continuo a ler artigos de opinião sobre as eleições que parecem tratados de matemática. E o povo?, pergunta a poeta. E nós?, pergunta o povo. Não meço a vitória dos partidos pela votação obtida, seja ela mais ou menos elevada, se aumentaram os números, se resistiram, se diminuíram. Já o repeti por aqui, e não só: nenhum partido me interessa enquanto fim, mas enquanto meio. Portanto, meço vitórias a partir do impacto sobre a vida das pessoas. Não é demagogia, é pragmatismo.
Um partido pode subir a sua votação, mas se isso não lhe permite fazer aquilo para o qual deveria existir, perdeu, por muita atividade autossatisfatória exibida em praça pública.
Olhemos para Lisboa. As pessoas do Bairro da Serafina, da Liberdade ou do Bairro da Boavista, aos quais o Dr. Carlos Moedas vai “regularmente tomar cafezinhos” fictícios, estão-se a marimbar para a cozinha eleitoral, e por muito que seja um problema, nem a questão do lixo é a sua prioridade.
As prioridades são as casas onde chove lá dentro; crianças com problemas asmáticos e a humidade nas paredes; habitações sem luz, sem água ou casa de banho; casas minúsculas; rendas indecentes que estrangulam as famílias, que as obrigam a ir para ainda mais longe do seu trabalho e abandonar décadas, gerações de história familiar, afetiva num território; prédios altos com elevadores avariados; canalizações precárias, com um fiozinho de água, cuja pressão, por vezes, nem dá para relançar a água quente — e isto quando o esquentador ainda funciona —; transportes insuficientes para ir para o trabalho, escola, centro de saúde, correios; manutenção dos espaços públicos intermitente e escassa, ao ponto de passarem a ser espaços inutilizáveis ou perigosos, nomeadamente para as crianças e pessoas idosas. Uma descentralidade perpetuada de forma voluntária.
Nunca me esquecerei da alegria quando soubemos da construção do parque recreativo do Alto da Serafina e de como, de forma estratégica, não foi feita uma entrada segura para as crianças do bairro, demasiado pobres, demasiado escuras, fazendo-nos sempre sentir como clandestinos naquele (para os nossos olhos) espaço burguês. Quantas vezes tive de responder à pergunta: “Mas a Serafina e a Boavista ficam em Lisboa?”
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Tantas contas continuam a fazer os partidos, 8%, 6%, 2%... e pouca importância parece ser dada à abstenção. Ah, mas foi mais baixa do que nas anteriores! Que bom! Palminhas! O gato está vivo! Mais de 40%. Esquerda(s), não será o momento de deixarem de se focalizar em migalhas e refletir em como trazer estas pessoas às urnas? Não será o momento de preparar já as próximas autárquicas em vez de fazer tudo à pressa, esquecendo o caráter local das eleições autárquicas e da importância do tempo longo, da proximidade com as populações e com as associações de terreno? As pessoas sabem quem por lá anda e quem só aparece em tempos de eleições. Não será o momento de divergir e negociar em privado e de se concentrar nos verdadeiros adversários em público? Não será o momento de reanimar o gato?»

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