«As manifestações que sacudiram as ruas de 20 cidades portuguesas, em consonância com as que ocorreram em dezenas de países por todo o mundo, juntando milhões de pessoas no protesto contra o genocídio em Gaza e em solidariedade com os participantes da flotilha humanitária, sequestrados e presos pelo Governo israelita em águas internacionais, essas impressionantes expressões de indignação, abrem, estou em crer, uma nova época neste funéreo ocaso do primeiro quartel do século XXI. No sentido em que criam e clarificam um novo separador de águas, uma nova fronteira entre a civilização a barbárie.
A questão é simples: existe, seja qual for o pretexto, o direito de um governo cercar militarmente um território de outro país impedindo os seus 2,2 milhões de habitantes de sair e privando-os de alimentação e ajuda humanitária com o fim de os exterminar pela fome e a doença? E sobre isso, chacinar a população indefesa com bombardeamentos selváticos, de que já resultaram pelo menos 62 mil mortos, com dramático destaque para as mulheres e crianças? Não existe, e toda a tentativa explícita ou implícita de legitimar ou banalizar este mal absoluto que é o genocídio impune do Governo israelita, apoiado pelo Governo dos EUA, é uma forma de cumplicidade. A que não escapa a União Europeia, ajoelhada perante a lei do mais forte ditada pelo império trumpista, incapaz de qualquer vislumbre de sanções contra a matança e os seus perpetradores, atolada num linguajar envergonhado e impotente. Esse é o campo da barbárie e dos seus encobridores.
Não me surpreende, por isso, que a chusma de comentadores-cúmplices que pululam, salvo raras e honrosas exceções, nas televisões e no nosso jornalismo se aticem contra Mariana Mortágua, acusando-a de fugir da política nacional para se refugiar numa flotilha folclórica ou a soldo do Hamas! E para tal, com a extrema-direita à cabeça, não se dispensou, como é timbre do Chega acolitado a um ministro da Defesa rastejante na defesa do genocídio e do Governo fascizante de Israel, o recurso à mentira torpe, à manipulação informática grosseira e ao insulto. A miséria absoluta.
Na realidade, eles não podem nem querem compreender precisamente que a questão de Gaza se tornou hoje a decência de toda a forma de estar na política. Em nome da decência, da dignidade humana, da justiça, da liberdade, do direito à autodeterminação e à democracia, do respeito pela moral e pelas regras do direito internacional como bases incontornáveis da civilização contemporânea. Ou em nome da não-política, isto é, da política sem outra razão estratégica que não seja o domínio, o saque, o lucro sem freio, o cinismo, a mentira, a nova política das canhoneiras e da força bruta.
Eu quero publicamente agradecer à Mariana Mortágua, à Sofia Aparício, ao Miguel Duarte, ao Diogo Chaves e aos 500 participantes na flotilha humanitária a sua atitude corajosa e clarificadora. Eles devolveram-nos a esperança nestes tempos sombrios. Não é pouca coisa. Afinal, é possível, e urgente, combater a barbárie.»

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