«As mulheres atravessam o mundo por caminhos que as palavras raramente alcançam. A certa altura, no filme a que assisti ontem, Sete Invernos em Teerão, perguntava-se: como é que um homem conseguirá alguma vez perceber, verdadeiramente, a violência de uma violação? A história de Reyhaneh Jabbari cresce a partir desse abismo. Aos vinte e seis anos foi entregue ao mundo como um aviso do que acontece quando uma mulher tenta proteger o próprio corpo.
O que este documentário revela, mais do que o confronto entre uma mulher e um Estado, é a forma como um poder — oriental, ocidental, do sul, do norte, que seja – pode afunilar o espaço até que o corpo feminino se torne objecto de gestão. Há países que o fazem por decreto, outros por moldura penal, outros por hábito, outros por distração. A forma e a intensidade mudam de geografia para geografia, mas permanece a estrutura que faz da mulher um território onde o Estado testa a força, onde a comunidade projecta o medo, onde a autoridade experimenta os limites da sua própria impunidade.
É sempre no corpo delas que o poder mede a sua sombra.
Aproxima-se o 25 de novembro, que Portugal bem celebra duplamente, e com ele a lembrança de que uma em cada três mulheres no mundo já sofreu violência física ou sexual às mãos de um homem. Por cá, a violência contra as mulheres surge como um caso, uma manchete, um desvio, uma estatística que se lê de passagem antes de seguir para outra página. O país trata cada agressão como se tivesse começado naquela noite concreta, naquele apartamento concreto, naquele homem concreto. A rotina absorve tudo sem estranheza. O problema não é a ausência de respostas. É a forma como o país se habitua a elas.
O século XX, no ocidente, avançou mais rápido do que os homens. As mulheres conquistaram o direito ao voto, ao trabalho, à propriedade, ao divórcio, à autonomia corporal; mas, hoje, uma menina que nasça em Portugal enfrenta ainda uma realidade difícil.
Cresce a ouvir que tem de ter cuidado, que deve avisar quando chegar a casa, que convém não andar sozinha depois de certa hora, que deve ter cuidado com o que veste. Aprende códigos que ninguém lhe ensina, adapta o corpo à rua, avalia distâncias, muda de passeio, decora gestos de autoproteção. Na escola percebe como certos comentários se disfarçam de elogio, que é preciso gerir a forma como fala, calibrar o tom, ajustar a presença para não perturbar o ambiente. Mais tarde, entrará no mercado de trabalho e perceberá a aritmética silenciosa que organiza carreiras: menos reconhecimento, menor progressão, salários que se afastam entre ela e o homem ao lado à medida que as responsabilidades aumentam.
A vida segue e a desigualdade instala-se sem anúncio. Vive nas escolhas que parecem livres e afinal são condicionadas. Vive nos lugares onde a ambição feminina soa a insolência. Vive na maneira como o país olha para as mulheres com a expectativa de que se adaptem sempre mais um pouco. Tudo isto desenha uma realidade onde a autonomia existe, sim, mas cercada por limites invisíveis que se acumulam até formarem um contorno que ninguém decidiu em voz alta, embora toda a gente o reconheça quando o vê.
No Irão o controlo do corpo feminino é tratado como pilar do regime. O regime vê a liberdade feminina como uma doença ocidental, e a sua eliminação como essencial à preservação dos valores do Irão. No Ocidente, a liberdade da mulher é moldada por forças mais subtis. A vigilância muda de forma, muda de discurso, muda de intensidade. Não muda de função. A política, a cultura, a tradição e até a ideia de progresso encontram nas mulheres o terreno onde testam a própria autoridade. A modernidade deu novos instrumentos, multiplicou máquinas e crenças, mas manteve intocada a convicção de que o corpo das mulheres é matéria de gestão pública.
É isso que atravessa Teerão e é isso que atravessa Portugal.»

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