4.11.25

Falar para os abandonados

 


«Há exatamente uma semana, o primeiro-ministro montou um palco com oito bandeiras nacionais para equiparar a aprovação do OE à da lei da nacionalidade. Nesse dia, Leitão Amaro, que já acusara o PS de “reengenharia demográfica”, rebranding da teoria conspirativa ultrarradical da substituição, declarou, no parlamento: “hoje Portugal fica mais Portugal”. No espírito de festa com o Chega, podia ter acrescentado que "não é o Bangladesh".

Este é o PSD mais à direita de sempre, porque nem tem o álibi da crise, como Passos. Radicalizou-se porque o chão da política se inclinou. E qualquer político de centro-esquerda parece estar obrigado a dar provas prévias de moderação, sendo a abstenção o pináculo da sua existência. De cada vez que o faz, ajuda a deslocar o centro relativo para o espaço entre neoliberais e autoritários. Até Seguro, antigo líder do PS, ter medo de dizer que é de esquerda.

Para além das políticas da imigração e da nacionalidade, o governo tentou sucessivas propostas fiscais, do IRS Jovem às de “apoio” à habitação (que levaram ao previsível aumento dos preços), descaradamente reversivas. Mostrando o cinismo, o discurso do governo muda quando se fala de propinas, com o ministro da Educação a defender o seu aumento porque “a gratuitidade é regressiva”. Para baixar impostos aos ricos, a justiça fiscal não interessa, porque todos ganham. Para aumentar propinas aos pobres (quem tem memória sabe bem dos limites dos apoios sociais), a progressividade passa a ser o alfa e ómega da política. Progressividade fiscal dispensa progressividade nos direitos. É por isso que ela é tão importante. Isto, na realidade, não é novo na agenda do PSD.

E está na calha a mais agressiva contrarreforma laboral, a única verdadeira política com princípio, meio e fim deste governo (avisei para o extremismo competente da jurista escolhida, logo na tomada de posse do primeiro governo de Montenegro), que nem tenta disfarçar com qualquer procura de consenso. O extremismo está no conteúdo, de que já aqui falei. E está na forma. Sabendo que a proposta não pode ser início de conversa, recorreu à chantagem: ou a UGT negoceia qualquer coisa, para aparecer na fotografia, ou o único interlocutor será o Chega, no parlamento. É para isto que a extrema-direita serve: pôr o país a falar da burca enquanto ajuda a acabar com os direitos laborais dos que votam nele. Ajudar os de cima enquanto entretém os de baixo com os que estão mesmo no chão.

O PSD virou à direita porque o Chega e a IL ameaçaram o seu flanco direito. Da mesma forma, o PS virou à esquerda (por dois anos) quando BE e PCP tiveram, juntos, mais de 18%, o suficiente para Costa depender deles. PS e PSD não têm, como partidos de poder, grandes limites programáticos. A sua posição é determinada pelo lugar para onde fogem os votos (e os interesses).

Quem queira reequilibrar a política portuguesa tem de olhar para o polo em declínio: o da esquerda. Só o seu reforço conseguirá reequilibrar o sistema partidário e impedirá a convergência do OS, aproximando-se da radicalização da direita. E só ela pode travar a migração do voto popular desencantado para a extrema-direita.

Derrotada a ala esquerda do PS e sendo provável a derrota nas presidenciais, os partidos mais à esquerda devem refletir sobre o papel que querem ter. A erosão do PS apenas degradará o ambiente político para resistir. O futuro não é por aí.

Nem Livre, nem PCP, nem BE, reduzidos a menos de 9%, estão, por si só, em condições de criar um polo popular que se bata pelo voto atraído pelo Chega. Não está o Livre, porque a sua militância, organização, programa e liderança dirigem-se a um eleitorado urbano qualificado, podendo crescer um pouco, na melhor das hipóteses, com o desalento com o PS. Não está o PCP, porque lhe falta ginástica tática, tem demasiado lastro e é quem agora está a perder voto popular para a extrema-direita, que substitui por intelectuais radicalizados perdidos pelo BE. Não está o Bloco de Esquerda, bloqueado na sua queda, leveza estratégica e incapacidade de ganhar raízes no povo a que chegou em 2009 e 2015.

Não sei, nem é isso que agora interessa, quem pode construir este polo e o papel de cada um destes partidos. Sei que não é partindo o PS ou unindo pequenas forças que lá chegam. É fazendo o que o Chega fez: ir para lá dessas contas, criando “novo” eleitorado.

É falando para os desencantados. Para os que foram esquecidos pela promessa meritocrática, abandonados por um Estado que se degrada. Jovens forçados a viver em casa dos pais; populações rurais cercadas de abandono e extrativismo intensivo; licenciados empurrados para emigração por uma economia viciada em salários baixos e futuros precários; funcionários públicos desmotivados por anos de desprezo; moradores de bairros periféricos maltratados e subúrbios mal planeados; famílias que desesperam por consultas e creches porque os recursos públicos servem para dar borlas fiscais aos de sempre; pequenos empresários ultrapassados por chicos-espertos com bons contactos.

É mobilizando, não tenho receio de o dizer, o ressentimento. Mas essa mobilização serve para unir o que a extrema-direita divide. Como espero que o mostre hoje Zohran Mamdani, candidato a mayor de Nova Iorque (voltarei a ele na edição impressa), com o seu "otimismo implacável", nas palavras de Stephen Colbert, o "populismo" de esquerda não é simétrico ao de direita, mas pode ser vencedor.

Os que julgam que a resposta está em ceder ao ataque aos trabalhadores imigrantes (como tentou e falhou a alemã Sahra Wagenknecht) não percebem que a derrota não está na incapacidade de vencer a extrema-direita no seu terreno, está na incapacidade de impor outro campo onde lutar. Porque andamos a discutir burcas e nacionalidade perante uma crise da habitação de proporções estruturais? Porque não se consegue sintetizar a nova lei laboral em algumas das suas medidas chocantes, mostrando como o Chega está sempre do lado do mais forte?

Como se vê em França, nos EUA e até na Alemanha, há espaço para crescer, sobretudo entre os jovens. Um bom começo é falar menos dos heróis de 1975 e mais para os desencantados de 2025. De tanto defender conquistas, a esquerda deixou de conquistar os descontentes da situação. É isso que está a matá-la.»


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