«Estávamos em janeiro de 2024, quase há dois anos, quando Montenegro anunciou com a habitual prosápia um plano de emergência para a saúde, para aplicar nos primeiros 60 dias de governação. Uma vez eleito primeiro-ministro, o dito programa foi aprovado e garantiu-nos que, já com Ana Paula Martins aos comandos, "os portugueses iriam ter razões para confiar no SNS". Ano e meio decorrido, os problemas do sistema de saúde acotovelam-se, a ministra desdobra-se em declarações contraditórias e para o primeiro-ministro tudo se reduz a uma "querela comunicacional".
Como é óbvio, as dificuldades do sistema de saúde não começaram hoje e não se resolvem amanhã. Ora, o primeiro equívoco de Montenegro foi sugerir de forma imprudente que se resolviam problemas estruturais com pensos rápidos, aplicados em 60 dias. Os resultados estão à vista. Como se não bastasse a demagogia, entretanto a ministra da Saúde acrescentou uma camada grotesca aos obstáculos preexistentes.
Questionada no Parlamento sobre a morte de mais uma grávida, Uma Caimi, Ana Paula Martins afiançou com terrível frieza que podia "assegurar que maioritariamente são grávidas que nunca foram seguidas durante a gravidez, que não têm médico de família, grávidas recém-chegadas a Portugal, com gravidezes adiantadas, que não têm dinheiro para ir ao privado. Grávidas que algumas vezes nem falam português, que não foram preparadas para chamar socorro, por vezes nem telemóvel têm".
A declaração já foi várias vezes glosada, mas há um dever moral de denunciar o grotesco quando com ele somos confrontados. Sabemos que Umo Caimi estava legal em Portugal, foi acompanhada durante a gravidez pelo SNS — inclusive no hospital ao qual se dirigiu — e as reações dos familiares e amigos revelam que seria uma pessoa "preparada para chamar socorro". O que também sabemos é que Ana Paula Martins, perante uma dificuldade, não hesitou: encostou-se à narrativa de que os problemas dos serviços públicos são culpa dos imigrantes.
É por isso que a morte de mais uma grávida esta semana é particularmente aterradora. Não só evidencia sinais de negligência, como é um exemplo trágico de como as narrativas políticas têm consequências. Era como se se estivesse a aguardar pela confirmação ministerial de um diagnóstico que se vinha insinuando: o SNS é assolado pelo turismo de saúde, há um conjunto de utentes que combinam défices de qualificações com iliteracia médica, transformando-se num risco para si próprios. No fundo, Uma Caimi foi vítima do seu oportunismo — viera para Portugal à última hora, com uma gravidez avançada e apresentara-se num hospital público quando já nada havia a fazer.
Só que a história da sucessão de grávidas que enfrentam problemas no SNS parece ser outra. A de um sistema que frequentemente tem dois pesos e duas medidas: negligencia as mulheres pobres e as mulheres imigrantes, enquanto protege aquelas que "têm dinheiro para ir ao privado", para recuperar, de novo, as palavras da ministra.
Estou convencido de que, quando olharmos retrospetivamente para o momento que vivemos, a saliência que a imigração ganhou no debate público destacar-se-á como sintoma de um processo de desagregação social, cavalgado politicamente. Mas também descobriremos que a fixação com os imigrantes era, afinal, parte de uma ofensiva mais vasta que obedecia a uma sequência previsível: primeiro os imigrantes, depois as minorias e, no fim, as mulheres. No que é também uma história grotesca que se repete.»

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