7.11.25

Um sorriso derrotou os milionários

 


«Zohran Mamdani não venceu os republicanos, pouco relevantes em Nova Iorque. Venceu a velha guarda democrata. Mesmo depois das primárias, os apoios do partido, como o da governadora, foram envergonhados. E a oligarquia que apoiou Trump juntou-se a Cuomo. Mesmo assim, perderam. O jovem Mamdani nunca perdeu o foco: o custo de vida. Numa cidade onde a renda média anda pelos €4000 e uma creche custa metade disso, propôs congelamento das rendas controladas, creches e autocarros gratuitos, financiado por um aumento de 2% nos impostos dos mais ricos dos mais ricos. Quase tudo o que propôs existe por essa Europa fora. Só que a defesa do que se aproxime de um Estado social redistributivo é, nos dias que correm, heresia.

O tabloide “New York Post” previu o êxodo de um milhão de nova-iorquinos. Musk, que beneficiou de quase mil milhões de bónus fiscais de Cuomo, usou o X para espalhar teorias da conspiração. O governador do Texas falou de “jihadismo radical”, os bots de direita encheram as redes com imagens do 11 de Setembro. A capa da “The Economist” pôs Mamdani na mesma prateleira de Trump, porque defender acesso a creches, transportes e bens essenciais mais baratos é equivalente a atacar a democracia e o Estado de direito e mandar encapuçados caçar imigrantes na rua. Quem ousar alimentar a esperança numa mudança na ordem das coisas, apresentada pelos poderes que a sustentam como natural, é tratado como extremista e populista. A ameaça foi a de sempre: os bilionários ou as empresas vão fugir. “Já gastaram mais dinheiro contra mim do que eu os quero taxar”, ironizou Mamdani.

87% dos eleitores de Mamdani votaram por causa dele, só 12% contra o oponente. Já do lado de Cuomo, 46% votaram por causa dele, 49% contra o oponente. Anotem: a repulsa pelo inimigo não chega. À impressionante e milionária campanha de destruição de caráter Mamdani respondeu com programa. O seu otimismo combativo mobilizou 100 mil voluntários e produtores de conteúdos nas redes. Foi a campanha mais profissional desde Obama. Mas foi mais do que isso. Em vez de impor soluções, Mamdani passou meses a escutar. Cedeu o microfone a nova-iorquinos comuns. Logo depois da vitória de Trump, perguntou-lhes das razões desse voto. Em vez de gritar, explicou. Usou a linguagem das pessoas normais para falar dos problemas das pessoas normais. Começou com 1%, acabou com 50% da maior mobilização numa eleição municipal desde 1969.

O “primeiro muçulmano mayor de Nova Iorque”, como disse quem continua a não perceber o que aqui é disruptivo, nunca caiu na tentação das trincheiras identitárias. Procurou o voto da classe trabalhadora e teve vitórias expressivas nos bairros latinos e asiáticos, onde Trump tivera um resultado histórico. Não precisou de se esconder. Assumiu-se socialista e abriu o discurso de vitória a citar Eugene V. Debs, um sindicalista e socialista da transição para o século XX. Quando lhe perguntaram qual o primeiro país que visitaria como mayor, não respondeu, como todos os outros, Is¬rael, para acalmar a influente comunidade judaica assustada com um muçulmano. Perante a armadilha, respondeu o óbvio: que tinha muito para fazer em Nova Iorque. Uma sondagem da CNN revelou que um em cada três judeus votou nele.

A derrota da esquerda não está na incapacidade de vencer no terreno da extrema-direita, está na incapacidade de impor o terreno onde luta. E a grande vitória de Mamdani foi, antes de tudo, derrotar os termos do debate impostos pelos que, nas suas palavras, querem “convencer quem ganha 30 dólares à hora que o seu inimigo é quem ganha 20”. Uma sondagem da CNN à boca de urna dizia que a maior preocupação dos nova-iorquinos era o custo de vida (57%), depois a segurança (22%) e só depois a imigração (10%). Contra algoritmos e agendas mediáticas, pôs a vida das pessoas no centro da política. Falando a linguagem das pessoas. E apresentando-se como a esperança contra um sistema de que elas estão visivelmente cansadas. A vitória de um socialista na capital da finança prova que é possível. Veremos se, ao nível local, também é possível libertarmo-nos do colete de forças das inevitabilidades construídas. Mamdani não venceu porque gritou mais alto. Nem porque fez um excelente trabalho nas redes. Venceu porque não teve medo de dar esperança, essa arma subversiva contra um desalento que definha a democracia, paralisa o povo e engorda a extrema-direita. Quando a esquerda perceber que é disso, e não da gestão cínica da derrota, que as pessoas têm fome, talvez volte a existir. Como disse o novo mayor socialista da capital simbólica do mundo, o futuro não tem de ser uma relíquia do passado.»


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