«Sobre a contrarreforma que leva à que provavelmente será a greve geral mais transversal, no seu pluralismo sindical, de sempre, já escrevi várias vezes. Sobre o banco de horas individual, que tirará aos trabalhadores o que recebiam por horas extraordinárias; a facilitação do despedimento individual sem junta causa e do despedimento coletivo para substituir trabalho com direitos por contratação externa mais barata e sem deveres; os entraves ao trabalho sindical; a forte possibilidade de passar uma vida inteira como precário (no segundo país com mais precariedade na Europa), alargando os motivos para contratos a prazo ao facto de nunca se ter tido um contrato permanente.
A lista é tão grande, que dava para vários textos a explicar ao primeiro-ministro, que finge não compreender a razão de uma greve a que chama “política”, mesmo quando sindicatos, da direita à esquerda, dos independentes às duas centrais sindicais, se unem de forma inédita. Mas na véspera da greve, quero falar de outra parte que é, na realidade, um recuo em relação ao pouco que se tinha conseguido na Agenda do Trabalho Digno: a negociação coletiva, instrumento defendido por qualquer social-democrata, por mais moderado que seja.
Um dos argumentos em defesa da contrarreforma laboral é que temos de nos preparar para o futuro. Nada há, neste imenso pacote legislativo, que tenha relação com os novos desafios. Pelo contrário, a redução de tempo de formação e o recuo na regulação do trabalho com plataformas digitais, como a Uber, provam a mentira. Preparar o futuro será, para qualquer pessoa razoável, regular novas formas de trabalho e novas realidades económicas para que à necessária flexibilidade das empresas não corresponda o regresso do trabalho à jorna. Esse foi o segredo dos anos dourados da Europa: tecnologia com direitos, crescimento com sindicatos. Não há outra forma de garantir a distribuição de riqueza.
Esta contrarreforma deixa-nos para trás. Como escreveu Ricardo Paes Mamede, num artigo do “Público”, enfraquecer a negociação coletiva é travar o desenvolvimento económico. Quem compete baixando os custos de trabalho desiste de investir na organização, na tecnologia e na qualificação. Participa numa corrida para baixo que leva o país consigo. Pelo contrário, “quando não é possível competir à custa de salários baixos, a competição desloca-se para a inovação, a eficiência, o investimento em processos e em capital humano”. Uma lei laboral que desprotege os trabalhadores favorece as empresas menos inovadoras. Por outro lado, continua o Ricardo, quem está sempre à procura de novos precários não investe na competência, que exige tempo e formação. Esta lei pune quem aposta na qualidade.
O aumento dos salários não depende apenas do aumento da produtividade, como insistem os que dizem que primeiro temos de crescer e só depois distribuir. Se assim fosse, os salários tinham acompanhado o aumento da produtividade, nas duas últimas décadas, e isso não aconteceu. À produtividade temos de acrescentar, como em qualquer jogo em que se confrontam interesses, o poder negocial dos trabalhadores. E esse poder resulta da sua organização, que se faz em torno dos sindicatos.
Na realidade, é uma pescadinha de rabo na boca: os sindicatos são mais fortes se os mecanismos de negociação coletiva forem mais robustos, porque aí está a sua utilidade; e ela será mais robusta se os sindicatos forem mais fortes. Fragilizar a negociação coletiva é, portanto, atacar os sindicatos e a capacidade negocial dos trabalhadores na hora de distribuir o bolo do aumento da produtividade.
No jargão sindical, usa-se a palavra “patrão” como uma realidade uniforme. É natural, mas os patrões não são todos iguais. Não me refiro à ética, que não é para aqui chamada. Refiro-me aos seus interesses e necessidades. As empresas com mais força política são, em Portugal, ou rentistas, ou quase monopólios naturais, ou em setores relativamente protegidos da concorrência externa. Isto ajuda a explicar a nossa baixa produtividade, aliás.
Por outro lado, falamos muito da pouca representatividade sindical. Sim, é modesta. E, para alem de culpas próprias, a razão está no princípio deste artigo e tenderá a agravar-se com este pacote laboral: sem negociação coletiva forte não há sindicatos fortes, porque perdem parte da sua utilidade. Não se fala tanto da representatividade das nossas associações patronais, que está muitíssimo abaixo da média da OCDE. Talvez a razão seja a mesma: se a nossa legislação não favorece a negociação coletiva, o associativismo empresarial só tem interesse como lóbi de cada setor.
Porque falo disto? Porque suspeito que a permanente necessidade de ir revendo a nossa legislação laboral venha de um grupo de patrões que mantém forte influência política junto dos governos, mas está muitíssimo longe de representar os setores mais dinâmicos da nossa economia. Empresários que estão viciados na concorrência por via da mão-de-obra barata e descartável, para que não tenham de dar o salto para o futuro, que os exponha a quem aposta nos argumentos que têm de contar.
Há muita coisa a mudar, por parte do Estado, para tornar as nossas empresas mais competitivas. Incentivos à formação, para que flexibilidade não signifique precariedade. Uma profunda reforma na justiça. Uma reforma do Estado que seja mais do que extinguir institutos e reduzir quadros para conseguir ter umas manchetes. O Simplex e todas as reformas a ele associadas, levadas a cabo pelo mais detestado dos ex-primeiros-ministros (por outras e boas razões), fizeram muito mais pela competitividade da nossa economia do que as sucessivas reformas laborais.
Como escrevi há 15 dias, tudo o que é relevante na nossa lei laboral nasceu em 2003. Todas as sucessivas reformas são deste século e só uma, há três anos, foi favorável aos trabalhadores. Não é a nossa legislação laboral que é anacrónica. São aqueles que acreditam que a redução de poder negocial dos trabalhadores, que permitirá manter salários baixos, tornará a nossa economia mais competitiva.
Ao contrário do que os mesmos que defendem esta contrarreforma diziam, o forte aumento do salário mínimo na última década não criou desemprego nem levou boas empresas à falências. Pelo contrário, preparou-nos para um futuro em que o argumento do trabalho barato não vencerá a aposta noutras vantagens concorrenciais.
Muitos se queixam, e com razão, de que o salário médio está cada vez mais perto do salário mínimo. Porque o segundo dependeu, com bons resultados, de decisão política. O primeiro dependerá de negociação coletiva. Se ela fosse forte, os salários teriam aumentado com a produtividade, as empresas que vivem de baixos custos laborais procurariam outros argumentos competitivos e o nosso país estaria mais preparado para o futuro. Como estão os países onde ela é um hábito quotidiano.
Extraordinário é que, em vésperas de greve geral e sem qualquer relação com o que está no anteprojeto, que retira poder negocial aos sindicatos e desprotege o trabalhador, Luís Montenegro venha, qual feirante em liquidação geral, dizer que o salário mínimo irá para os 1500 ou 1600 euros (o seu compromisso é chegar aos 1100 em 2029) e o salário médio para 2500, 2600 ou 3000 euros. Quem dá mais no mercado da desesperada de agosto, que amanhã anda à roda? Mais um dia de greve e o SMN chegava aos 3000 euros e o médio aos 10000. Tudo apresentado num PowerPoint. Ou mostraram ao primeiro-ministro um anteprojeto oposto ao que existe, ou julga que ficará no poder mais umas décadas ou, mais provável, a falta de respeito por quem trabalha é mesmo absoluta.
NOTA: Amanhã, coerentemente, não publicarei a minha crónica habitual. Estarei em greve»

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