17.3.20

Estado de emergência contra a disciplina voluntária



«Num momento de aflição e ansiedade não tem faltado quem se dedique a pedir com urgência o que sabe que acabará por acontecer, ignorando, na maior parte das vezes, a necessidade de preparação e os limites temporais em que algumas medidas podem vigorar. Medidas extremas, se não forem preparadas, podem ter efeitos ainda mais nefastos do que aqueles que pretendem evitar. O que quer dizer que uns dias podem fazer toda a diferença entre a contenção de um desastre ou o agravamento de um desastre. E há medidas, como a quarentena mais restritiva, que têm um tempo limite de duração depois do qual um país entra em colapso. Não entrar cedo nesse estado (e não faço ideia se agora é cedo ou tarde) é o que evita ser obrigado, de forma ordenada ou desordenada, a sair cedo demais dele. Há decisões que se tomam mesmo cedo demais. Este é o tipo de assuntos em que devemos confiar nas autoridades, assessoradas por técnicos de saúde pública e não só. Deixo este tema mais abrangente para amanhã, se nada se colocar no caminho. Hoje fico-me por assunto estritamente político e constitucional: a declaração do estado de emergência. Quem queira perceber o que é, para além do que sugere a palavra, aconselho a leitura da Constituição da República Portuguesa e da lei 44/86.

Como aconteceu com o fecho das fronteiras com Espanha, que tinha preferencialmente de ser negociado, ou o encerramento das escolas, que tinha de ser preparado, há um movimento de cidadãos, a que o Presidente da República parece ser sensível, em defesa da declaração do estado de emergência que já existe noutros países. Há médicos a exigi-lo, como se fosse uma forma de contenção do vírus. É como se declarar o estado de emergência levasse à existência da própria emergência, mobilizando mais meios e vontades.

Mas a declaração do estado de emergência tem uma função: dar mais poderes ao Governo e às autoridades administrativas. Declarar o estado de emergência não trava coisa nenhuma, não sensibiliza ninguém, não põe ventiladores e médicos nos hospitais. O estado de emergência nem sequer limita, por si só, a liberdade de movimentos dos cidadãos. Apenas dá essa latitude legal de ação ao Governo, se assim o entender. Isso só faz sentido se o Governo e as autoridades não estiverem a conseguir, por causa dos limites que a lei lhes impõe ou pela desobediência dos cidadãos, aplicar as medidas que vão sendo definidas.

Até agora, não há qualquer evidência de que a Lei de Bases de Saúde e a Lei de Bases da Proteção Civil (que ainda permite subir para os graus de contingência e de calamidade e que dá imensa latitude às autoridades para agir contra quem desobedeça a ordens suas) não sejam suficientes para fazer tudo o que tem de ser feito agora. Não conheço nenhum episódio de resistência às autoridades, não se sabe de qualquer pedido de requisição de bens ou propriedade desejado pelo Estado, não há casos de desordem pública e nenhuma ordem de restrição de movimentos foi ainda solicitada que seja impossível no quadro atual – e só quando for saberemos se ela necessita de outro reforço legal.

Em resumo, tirando a parte simbólica, alguém terá de explicar o que muda, neste momento, o estado de emergência. Veremos, se ele vier, na fundamentação que é exigida para a sua aprovação. Sinto que há quem julgue que a palavra “emergência” - e não o conteúdo desta figura constitucional - fará milagres.

Penso que será a primeira vez na história de qualquer nação que o estado de emergência é decretado sem que o Governo, que é o seu executor, tenha mostrado vontade de o fazer. Na realidade, se um governo pode fazer o seu trabalho sem que se decrete o estado de exceção é melhor que assim o faça. Estranho é que sejam os cidadãos a pedir ao Governo para que reforce o seu poder sobre eles quando demonstram, como têm demonstrado crescentemente, sinal de respeito pelas ordens dadas e não há notícia de desobediência às forças de segurança. É como se a nossa disciplina valesse menos por ser voluntária.

É sinal de falta de apego a direitos, liberdades e garantias esta vontade de os entregar a um governo sem que esse o governo sequer o tenha solicitado. Atitude ainda mais estranha é a de quem pede a declaração do estado de emergência como forma de criticar um qualquer suposto laxismo do Executivo. Querem reforçar os poderes de quem julgam que o exerce mal?

Compreendo que a forma encontrada pelo Presidente da República para mostrar preocupação e firmeza seja esta declaração do estado de emergência. Já se sabe que o Governo não se oporá e o Parlamento o aprovará por unanimidade. Ninguém responsável quer, neste momento, qualquer tipo de conflito político. A ação de Marcelo Rebelo de Sousa, reduzida a este ato simbólico que alguns julgam milagroso, acabará aqui. Compreendo que milhões de pessoas ansiosas sintam aquela irreprimível necessidade de ver que sobem degraus de ação e prevenção que as fazem sentir mais seguras. Se a declaração do estado de emergência tiver essa função apaziguadora (como supostamente teriam todas as anteriores), que venha. Mas mesmo esse efeito esgota-se agora e até cria expectativas que não poderão ser acompanhadas. Quando for preciso dar esse sinal, mais nada restará a não ser o que inevitavelmente vai acontecer.

Se a perda de direitos, liberdades e garantias não foi necessária para nenhuma medida até agora tomada e para todas as que estão planeadas para os próximos dias, talvez fosse mais avisado usar este expediente quando estivermos perante um impedimento real e identificado à ação das autoridades e do Estado. Até porque o estado de emergência tem de ser renovado de 15 em 15 dias e isso ocupará quem devia estar preocupado com o que tem mesmo de ser feito, no quadro da lei que temos enquanto ela for suficiente. Nada disto implica que o estado de emergência não venha a ser necessário, perante novas dificuldades. É até bem provável que o seja, como foi noutros países. Os limites à circulação assim o podem vir a exigir. Fará sentido, perante essa necessidade, dar este passo. Mas não para nos obrigarem a fazer o que já fazemos voluntariamente.

Não me parece que dar sinais crescentes de alarme seja sempre o mais indicado. Se o povo consegue ser disciplinado, se não há motins, revoltas ou movimentos de desobediência às forças de autoridade, se não há greves e manifestações, se não há sequer a necessidade declarada de requisição dos hospitais privados, havendo total abertura de cooperação, se é possível limitar os movimentos das pessoas com a lei em vigor (que nem sequer esgotámos), porque precisamos que nos ponham na ordem? Merecia, quando isto passar, que nos deitássemos todos no divã. Outros povos resistem ao estado de exceção, nós desejamo-lo mesmo quando o poder não o pede.»

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1 comments:

" R y k @ r d o " disse...

Boa tarde. As coisas estão muito complicadas, essa a grande verdade

Cumprimentos