10.12.08

Capelanias hospitalares - Carta da Associação Ateísta Portuguesa

(Recebida por mail)

Exmo. Senhor.
Presidente da Comissão da Liberdade Religiosa
Dr. Mário Soares

Senhor Dr. Mário Soares:

A Associação Ateísta Portuguesa (AAP) vem junto de V. Ex.ª, solicitar o seu empenhamento para que seja declarado nulo o novo acordo de colaboração entre o Ministério da Saúde e a Igreja Católica, por violar a laicidade a que o Estado é constitucionalmente obrigado.

O novo acordo de colaboração entre o Ministério da Saúde e a Igreja Católica, no sentido de regular a assistência religiosa nos hospitais, levanta sérias preocupações a dois níveis. Por um lado, porque se aparenta justificar numa suposta eficácia terapêutica que terá a participação de padres católicos no processo de recobro. Por outro lado porque representa uma intromissão inaceitável do Estado nesta matéria tão pessoal que é a religião.

A Sra. Ministra da saúde Ana Jorge anunciou em Fátima que o acordo com a igreja católica se justificava porque a saúde «não é só o tratamento físico», mas a «espiritualidade entra neste campo global»(1). No entanto, mesmo que o bem-estar dos doentes não resulte só da terapia e da medicação, não é verdade que exija uma espiritualidade no sentido de crença religiosa ou dependência do sacerdócio. Muitos doentes encontrarão todo o conforto e consolo nos seus familiares, nos seus amigos e na competência e empenho dos técnicos de saúde que os acompanham. A religião não é uma componente necessária da terapia.

Além disso, a espiritualidade religiosa não é necessariamente o catolicismo. Só se justificaria por razões médicas celebrar este acordo específico com a Igreja Católica se houvesse evidências concretas que esta religião não só é eficaz no recobro dos pacientes como é mais eficaz que as outras religiões que não estão cobertas por este acordo. Não há indícios que assim seja.

Quanto ao direito de acompanhamento religioso este acordo tenta resolver um problema inexistente. O direito de receber apoio espiritual já está garantido nas visitas hospitalares, nas quais o doente pode receber familiares, amigos ou sacerdotes da sua religião sempre que tais visitas não comprometam a sua recuperação. Por isso o que parece estar em causa neste acordo não é o direito à assistência religiosa mas sim quem financiará este encargo, se a Igreja Católica ou se o contribuinte. O que põe em causa outros direitos do doente.

Põe em causa o direito do doente, enquanto doente, que o Ministério da Saúde promova uma utilização eficiente dos recursos de que dispõe. E estes não são tão abundantes que o salário de um capelão não faça falta para equipamento, técnicos de apoio, de enfermagem ou médicos. Põe em causa o direito do doente, enquanto crente, que o Estado não se intrometa na religião nem favoreça umas em detrimento de outras. E põe em causa o direito do doente, enquanto contribuinte, que o seu contributo para o Estado seja usado com justiça para ajudar aqueles que mais precisam em vez de subsidiar a Igreja Católica, uma das organizações mais opulentas de Portugal.

(1) - Agência Ecclesia, Acordo entre Ministério e Capelanias Hospitalares

Confiando no empenhamento de V. Ex.ª na defesa da laicidade, condição essencial para a defesa da liberdade religiosa, apresento-lhe, em nome da Associação Ateísta Portuguesa, os melhores cumprimentos.


Odivelas, 10 de Dezembro de 2008

Carlos Esperança
(Presidente)

15 comments:

Anónimo disse...

Textos como este tornam evidente: o ateísmo transforma-se a pouco e pouco na religião mais fundamentalista de Portugal (e da Europa).

maria disse...

Joana,

tenho de discordar do Carlos Esperança.

tenho uma visão pessoal sobre o assunto e sempre que cruzo as portas dum hospital a última coisa de que me lembro é dum padre. Eu até fujo de todas as senhoras caridosas que lá andam a distribuir cafezinhos e bolinhos. Mas isso sou eu, que gosto de lamber sozinha as minhas feridas.

Sei que muitos dos doentes, que devido à fé que receberam, até vêm a doença como um castigo, ou descuido de Deus, precisam que uma voz autorizada da Igreja se faça presente nesses momentos. E outros vêm simplesmente nessa presença um auxílio e apoio. De Deus e da Igreja.

Os outros credos, que não o católico, devem ter os mesmos direitos de acesso. Não é negar a uns porque não se dá a outros.

O pormenor de utilizar a hora das visitas é miudinho, quanto a mim, quem é que pode fazer uma aproximação íntima como se pretende no contexto de que falamos no meio da algazarra, que são nromalmente as horas de visitas hospitalares?

A questão monetária é o "calcanhare de Aquiles", na questão. Para mim. Preferia que fosse a Igreja a arcar com as despesas das capelanias hospitalares.

Também acho que muitos padres que fazem capelania hospitalar, não têm a mínima noção do que estão a fazer, mas isso não me leva a dizer que a solução é acabar com elas.

septuagenário disse...

Uma associação à medida do presidente.

Talvez tão necessária e tão dispendiosa para o bolso do contribuinte, como um padre no recobro.

Anónimo disse...

Estou de acordo com a carta da Associação Ateísta enviada a quem devia recebê-la. A liberdade religiosa não é uma exclusividade religiosa. Duma determinada religião, em instituições dum Estado laico de pessoas livres.

Estamos numa de unicidade católica. Essa, a Católica, a única, e depois sobrarão os “pobres” de Cristo, algures, dispersos, esquecidos. Terão estes , também, que começar com uma “Carta Aberta”.

Esta omnipresença da Igreja radica na História, mas seria desejável que a Igreja Católica, aceitando também aqui a época em que vive e onde vive, fosse cedendo nalgumas das suas regalias. Num “onde”, com significativa e diversificada imigração, com um alto nível de urbanização, ensino obrigatório, etc.
A presença de um padre católico nos hospitais, junto dos doentes, será mais do que uma pressão, aproxima-se duma opressão. Eu, como doente num hospital, senti-la-ia assim.
Que os doentes, com crenças religiosas diversas, tenham direito aos seus sacerdotes, fora das horas de visita, na intimidade, nas suas últimas horas. Se o quiserem. Por favor, nem reduzam, ao doente, a sua condição de homem livre, nem exaltem a presença dum padre não desejado.

Joana Lopes disse...

O facto de publicar aqui a carta da AAP não significa que assine por baixo de cada linha nela contida, mas apenas que a considero uma reacção correcta ao Acordo entre o Ministério e as Capelanias Hospitalares, tal como ele foi noticiado pela Agência Ecclesia, para o qual a carta remete.

Passo a citar: «A Ministra considerou que “a melhoria da qualidade dos doentes nas instituições de saúde” passa pela dimensão terapêutica da espiritualidade. » Lamentável: como ministra de um estado laico, não deve fazer afirmações deste tipo.

«Com o novo acordo ficam garantidos vários itens essenciais: “Um conceito de prestação de cuidados de saúde que não passa sem a assistência espiritual e religiosa – isto até agora não era garantido -; a presença da Igreja Católica – visto que é garantido o princípio de representatividade – e também a presença das outras confissões consoante a representatividade”, conforme salientou o Pe. José Nuno.» Reforço do que acima terá sido dito pela ministra: aqui já se usa a expressão «não passa sem».

Luís Bonifácio disse...

Eu apoio inteiramente a posição da Ministra de Saúde e rejeito completamente a postura Nazi (porque a intolerância que trespassa dos textos do Sr. Esperança se assemelha mais aos Nazis e bastante menos ao Salazarismo).
Goste-se ou não a esmagadora maioria dos portugueses é, em maior ou menor grau, católico.
Que eu saiba ninguém é obrigado a receber o apoio espiritual das capelanias hospitalares. Mesmo que não queira estar próximo de um padre, quando for ao Hospital o Sr. Esperança, nem sequer é obrigado a receber tratamento, podendo morrer em paz e ateiamente em casam, confortado com os santos sacramentos do grande arquitecto do oriente.

dr maybe disse...

o luís Bonifácio também pode morrer cristãmente numa qualquer igreja e deixar os hospitais para a medicina.
onde quer que seja colocado um padre, um dos objectivos é a evangelização, por isso não estou bem a ver porque tem o estado laico que apoiar este tipo de iniciativas.

Luís Bonifácio disse...

CAro Dr. Maybe.

Sabe porquê?

É que na hora da aflição não existem ateus!

dr maybe disse...

mas qual aflição?

Anónimo disse...

Estou cansada mas quero só deixar dois apontamentos.

1. Não, MC, "O pormenor de utilizar a hora das visitas é miudinho", é falso, como já explicou Vital Moreira há mais de um ano: "O problema é que se tratava de excesso de imaginação e invenção dos interessados. Afinal, o projecto governamental não contém nenhum dos alegados aspectos. Extingue para o futuro o regime das capelanias, mas mantém as que existem até que vaguem, ao mesmo tempo que o novo regime assegura o pagamento dos serviços de assistência em si mesmos. Também não exige uma solicitação pessoal dos próprios doentes, antes permite explicitamente que o pedido seja feito por familiares ou amigos próximos, para além de que a assistência pode ser prestada por iniciativa dos próprios ministros do culto, sem solicitação específica dos doentes (ou de outrem), sempre que estes tenham indicado, querendo, a sua religião para efeitos de assistência religiosa. E tampouco limita a assistência ao horário das visitas; pelo contrário, estabelece explicitamente que ela pode ocorrer em qualquer altura em que seja solicitada, preferencialmente fora das horas das visitas." (http://aba-da-causa.blogspot.com/2007/10/ainda-os-capeles.html)

2. Joana,

Relativamente a isto: «A Ministra considerou que “a melhoria da qualidade dos doentes nas instituições de saúde” passa pela dimensão terapêutica da espiritualidade. » parece-me muito mais óbvio que se tenha uma postura maximalista e, portanto, nada melhor para “a melhoria da qualidade dos doentes nas instituições de saúde” que... só internar saudáveis.

Joana Lopes disse...

Não era má ideia, Ana. E então podia-se prescindir das capelanias...

Anónimo disse...

Corrijo:

Não, MC, "O pormenor de utilizar a hora das visitas" NÃO é miudinho, É falso

(eu bem disse que 'tava cansada)

maria disse...

Ana,

tive uma semana complicada (ou um dia complicado, que se prendeu com mais um exame de diagnóstico que tive de fazer e que me lixou a capacidade de racíocínio toda) e confesso que tenho dificuldade em perceber o que quer dizer. Mas vou eu dizer mais algumas coisas do que penso deste assunto.

Eu comentei e chamei "miudinho" a hipótese do Carlos Esperança de reservar para as horas das visitas a assistência espiritual. Porque acho que na prática isso não era nada. Uma pessoa doente, por vezes, vê-se confrontada com decisões e pensamentos que não quer partilhar com a própria família, que já tem de gerir a ansiedade que a doença acarreta. Mas se tiver junto de si, em espaço de intimidade, algum representante da Igreja a que pertence, pode encontrar um espaço de diálogo que ajude a aliviar a situação de tensão que a doença acarreta.

Nós sabemos muito bem o que é o nosso SNS. O próprio reconhece que a questão humana é a mais deficitária. Não quero tornar este assunto nada pessoal, mas nas primeiras consultas que fiz no IPO o médico assistente mal olhava para mim. Olhava era para os papeis. E mais tarde para o ecran de computador (finalmente tinha um). Isto faz com que um doente, a cada consulta, aumente a ansiedade de se sentir mais um número das diferentes estatísticas, e não a pessoa que se vê a braços com um problema e que encontra um meio onde todos se empenham para que seja resolvido ou minimizado. O restante pessoal reclama do muito trabalho, da falta de meios etc. O doente sente-se a mais, um corpo estranho, numa engrenagem caduca e sempre à beira de rebentar pelas costuras.
Ainda hoje sempre que cruzo os portões do IPO, deixo de me sentir a mulher que sou, armo-me da couraça possível para resistir a todo um esquema despersonalizante que é o sistema de saúde em Portugal.

Uma capelania não resolve estes problemas, mas pode, se quem estiver responsável por ela for capaz disso, amenizar esta imensa desumanização de que falo. Há capelanias que cumprem este papel, a maior parte creio que não. O meu problema é ao contrário do CE. As capelanias, em grande parte, não cumprem a sua função.

Joana, peço desculpa por este longo comentário.

Anónimo disse...

Cara MC,

Imagino, agora, que se está a referir à frase "O direito de receber apoio espiritual já está garantido nas visitas hospitalares, nas quais o doente pode receber familiares, amigos ou sacerdotes da sua religião sempre que tais visitas não comprometam a sua recuperação.". Como não tinha entendido, nem entendo, que na referida frase esteja dito que o apoio espiritual esteja limitado às horas de visita - bastante mais estendido desde há uns anos -, assumi que se referia a um argumento utilizado numa discussão alargada que ocorreu há cerca de um ano, daí ter deixado o link para um artigo de opinião do Vital Moreira, publicado no Público nessa altura.

Um abraço para si,
ana

maria disse...

abraço recebido e retribuido, Ana.