Só vejo certezas quando se discute a questão do porte da burka no Ocidente, trazida de novo para a ordem do dia em França, por cinquenta e oito deputados de todas as tendências, que propõem a sua proibição. Trata-se de uma reacção à aparente viragem na posição de Sarkozy que apoia Obama quando este defende que o uso da burka deve ser permitido no caso de se tratar de «uma escolha livre» da mulher (o que não será fácil comprovar, convenha-se…) Por outro lado, parece evidente que uma proibição generalizada teria como resultado que as «vítimas» se fechassem em casa.
Nada mais fácil do que concordar com os dois argumentos, certamente os politicamente mais correctos. Mas não deixa por isso de ser verdade que se trata de um fenómeno que, embora marginal, traz consigo a marca de um fundamentalismo do qual as mulheres continuam a ser as principais vítimas e que fazê-las quebrar esse cerco é certamente um dever das sociedades que as acolhem. Além de que o hábito faz também o monge , «em Roma, sê romano», etc., etc.
Enfim , dúvidas existenciais de quem não é especialmente sensível ao valor supremo da liberdade religiosa e, muito menos, à contribuição das religiões para o progresso do mundo e o avanço das civilizações.
P.S. 22/6 - A discussão continua acesa, em França.
12 comments:
As mulheres que usam burka por fora são vítimas dos que usam burka por dentro.
E há muitas burkas que se não vêem mas que existem efectivamente.
Plenamente de acordo consigo e fundamentalmente com o teor do último parágrafo do seu post.
Bm, pelo menos o primeiro comentário não foi de ataque feroZ! Obrigada.
Joana,
Não é fácil ter certezas e eu tenho muitas dúvidas quanto à proibição. Para além de remover um símbolo de opressão (para umas, para outras é símbolo de libertação) da frente dos nossos olhos, impedindo assim que sejamos confrontados com ela a toda hora e momento, que impacto é que essa proibição tem na quebra real desse cerco? O que é que se pretende realmente resolver? O nosso incómodo ou o fundamentalismo que vitimiza essas mulheres, do qual a burka é apenas a parte visível e menos importante? Não será a proibição uma forma de nos abstermos de encontrar formas mais eficazes e menos agressivas de as ajudar, sem pôr em causa os direitos das que a usam de livre vontade?
(Acho que esta questão é mais cultural do que religiosa)
Dúvidas também eu tenho e partilho as suas: há dias em que me inclino para um lado, outros para o oposto... Não consigo separar o cultural do religioso, neste caso: estamos na questão de saber se é primeiro o ovo ou a galinha, julgo.
Sou contra probições. Seja por dá cá aquela palha, seja por dá aquela burka. Mas o que não se pode esconder por debaixo de uma burka? E se, de repente, os homens e mulheres no Occidente adoptassem a burka como uma tendência dessa coisa a que se chama "moda"? E se o seu uso se torna-se generalizado. Seria proíbido, como outrora a mii-saia? Isto sou eu a delirar. Como (ainda) não é proíbido...E com este calor...
Hoje tive pala 2ª vez a observar de perto uma mulher de burqa por mais de 30 minutos. Almocei num restaurante do que aqui se chama "barbistes". Têm um cantinho onde podem comer casais. Fechados com biombos. Vi a sra chegar e observei-a pelos buracos do biombo. Já tinha feito uma viagem com uma mulher igualmente vestida. Tudo negro, luvas e um véu que cobre a cara, deixando só os olhos à mostra. Quando entram em algum lado parecembichos. Os seus olhos não param, não se podem fixar um segundo sequer noutro olhar! Porque se o fizer, concerteza vai levar porrada qd chegar a casa! A pobre da mulher mesmo mais recatada numa sala, tirou o véu e comeu com uma face virada para a parede e a outra sempre tapada pela mão! Não falo de cor, conheço muitos que batem na mulher qd se porta "mal". Assim como outros que trancam a porta qd saem de manhã para o trabalho! Tb há mulheres que se vestem "normalmente"... Essas são observadas por homens que mais parecem cães perto de uma cadela com cio! Animais! Será necesario um ser humano andar coberto, sem identidade? O problema não está nas mulheres, mas sim na cabeça dos homens! Muitas andam assim por opção, porque crescem debaixo de olhares porcos, lascivos num país em que a prostituição está em cada esquina... só que quem está de passagem não a vê! Peço desculpa pelo testamento.
Um abraço!
Um abraço, Jakk.
Para ti, isto não é figura de estilo, vives a realidade no dia a dia.
Esses olhares dos homens de que falas, vivi-os na pele quando passei um mês aí em Argel, ainda por cima a ter de tratar de imensas burocracias que dependiam «deles»!
Poibir o uso da burka no ocidente não será uma solução, mas sim um mal menor. Temos o exemplo do que se passa agora no Irão. Onde vejo com orgulho um número impressionant de mulheres, que foram abençoadas pelo esclarecimento, educação! Que podem pensar por elas mesmas, a manifestar-se. Há pouco tempo recusou-se cidadania francesa a uma mulher, creio que argelina que usava estas vestes... O seu discurso era uma cópia do dos homens da sua família! A religião foi de facto importante, mas já sabemos que estamos no meio de um vasto Universo e que a Terra gira à volta do Sol! Se fomos feitos à imagem de Deus, ele já se pôs a andar, com medo da experiência falhada! Respeito a fé, abomino o fundamentalismo!
Joana,
Concordo que é muito difícil separar religião de cultura. A cultura informa a religião tanto quanto a religião informa a cultura, mas eu estava a pensar no uso do hijab (lenço) versus o uso do hiqab (véu) e burka nas comunidades muçulmanas. O que separa uma comunidade muçulmana que adopta o hijab de uma que adopta a burka é a cultura e não a religião, embora a explicação dada para o uso da burka seja sempre a religião e não a cultura. O mesmo se passa com a maior ou menor submissão das mulheres de uma comunidade para outra.
É na religião que procuram a legitimação da imposição de determinadas regras no sentido de consolidar o poder de uns sobre outros, legitimação essa que até pode não estar lá, como não está no Corão a obrigatoriedade de cobrir o rosto mas, como em todos os livros sagrados, os versos são elásticos. Pena é que só estiquem para um dos lados.
And the weaver said, "Speak to us of Clothes."
And he answered:
Your clothes conceal much of your beauty, yet they hide not the unbeautiful.
And though you seek in garments the freedom of privacy you may find in them a harness and a chain.
Would that you could meet the sun and the wind with more of your skin and less of your raiment,
For the breath of life is in the sunlight and the hand of life is in the wind.
Some of you say, "It is the north wind who has woven the clothes to wear."
But shame was his loom, and the softening of the sinews was his thread.
And when his work was done he laughed in the forest.
Forget not that modesty is for a shield against the eye of the unclean.
And when the unclean shall be no more, what were modesty but a fetter and a fouling of the mind?
And forget not that the earth delights to feel your bare feet and the winds long to play with your hair.
Khalil Gibram
"The Prophet"
Num pequeno livro sobre o relativismo, que estou lendo, aparece umas citações de Montaigne que copio.
“...uma nação vê um assunto com um olhar [...]; outra, com outro” e “Não há nada mais horrível de imaginar que comer o próprio pai. Os povos que antigamente tinham esse costume tomavam-no, todavia, por testemunho de piedade e grande afeição, procurando com isso dar aos seus progenitores a mais digna e honrosa sepultura, alojando em si mesmos e como se nas suas medulas os corpos e os restos dos seus pais. [...] É fácil imaginar que crueldade e abominação teria sido, para os homens imbuídos desta superstição, lançar os cadáveres dos pais à corrupção da terra para servirem de alimento às bestas e aos vermes”
Que fazer então? Arrancar-lhes o alimento, com que honram os pais, ou esperarmos um convite para jantar ? Honrando assim – e não é nossa obrigação honrarmos os nossos pais! – os pais dos outros, com os valores dos outros. Ou, por outro lado, impedirmos que eles o façam, porque não aplicam aqueles critérios que são os nossos. Para eles, insuportavelmente estranhos e repugnantes. Como para nós, os deles.
Esta é, claro, uma questão provocatória. Eu, enredado entre o meu relativismo e o meu culturalismo, não sei. Não sei mesmo nada, quase nem me atrevo a querer saber, e calar-me-ia se não houvesse uma questão que me parece muito ignorada. Como nos vêem os outros? Eles não terão os nossos pequenos amparos teóricos, não sei, julgo eu, mas têm, os judeus, pelo que me parece, uma religião que se assemelha a um código de comportamentos e os islamitas uma religião visceralmente enfiada na sua vida social. E mesmo nós, será que devíamos seguir a Lei do Sermão da Montanha (A Monstruosidade de Cristo de Slavoj Zizek lembrou-mo).
Acabo já. O tom geral dos comentários foi aceitável. Para mim. As coisas da França, com aquelas flatulências do seu laicismo e do seu republicanismo, são insuportáveis. Essas, inaceitáveis. Paciência, tolerância e inteligência precisam-se. Que não se continue com o reles colonialismo, este, imigrado. Ou com um racismo, com os deveres inerentes – ou será que serão obrigações históricas? –, de uma outra cultura, esta, sim, superior.
Não é doutrina que expenda. É apenas uma boca: cada cultura deve procurar as suas próprias formas de substituição, com valor simbólico equivalente, de hábitos e costumes, tidos, começando a começar pelos próprios, como cruéis e inumanos.
A nossa cultura, com o suporte duma população que se reduz, míngua. E por mais alguma coisa. E transforma-se rapidamente. E o Ocidente virá a ser a casa de todos, de muitos, esmagadoramente, poucos ou nenhuns ficarão de fora. Enquanto os ocidentais, eles próprios, confinando-se no seu canto, na sua burka, não para esconder belezas, mas horrores, como a imagem que a História e os tempos que se vivem criaram, vão fechando as portas do que ficará para além do seu actual espaço. Se até lhes deixaresm a própria casa.
É gente que nem sabe honrar os pais, lançando-os à corrupção da terra!
Joana
nem preciso de dizer que a burka me parece uma jaula fechada e às escuras, mas, a sua proibição, também não tenho duvidas, será uma extrema violencia para estas mulheres que, quando mais "destapadas" sentirão mais ou menos o mesmo que se a nós nos mandassem nuas para o meio da rua. Foi assim me colocou o caso um muçulmano com quem trabalho e acho que ele tem razão....
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