Post sob a foram de carta.
Camarada Joana,
aqui vai um pequeno e apressado contibuto para a reflexão que o teu post impõe acerca da Petição que por aí começou a circular, pura inversão simétrica, e em mais inábil ainda, da Petição/Manifestação da Liberdade, cujo sentido político aberrante foste a primeira voz a denunciar.
1. O objectivo da Petição é apelar ao cerrar fileiras em torno de Sócrates e/ou do seu governo, identificando-os sem resto com o PS. O caminho está aberto para a denúncia da traição ou do divisionismo daqueles que, no PS, perante esta ofensiva, comparada ao "gonçalvismo" de 1975, ousarem atacar o chefe, criticar a actual linha do partido, propor alternativas. O que é curioso é que Mário Soares, no artigo do DN que ontem aqui citaste, faz exactamente a mesma coisa, avalizando o actual governo em termos como nunca o fizera até agora.
2. Apesar da inépcia da Petição, esta, na esteira "Manifestação da Liberdade", que já tivera o mesmo efeito, está a contribuir para o silêncio da candidatura de Manuel Alegre. O movimento de antecipação que parecia consolidar e tornar quase inexpugnável a "candidatura de unidade" de Manuel Alegre tende agora a virar-se contra ele. A cada instante que passa sem que fale, perde terreno; se falar, juntando a sua voz, ainda que com cambiantes, à de Mário Soares, perde terreno; se, pelo contrário, optar por falar como tu e outros dos apoiantes da sua candidatura, apelando ao mesmo tempo à mudança de rumo do PS, será denunciado pelo aparelho do partido e os seus homens de mão como agente dessa extrema-esquerda que quer, como diz Soares, devorar o PS às talhadas.
Em suma, toda a manobra cujo sintoma mais espectacular é a Petição a que o teu post se refere beneficia e dá voz aos que no PS tentavam fazer gorar-se a candidatura de Alegre, considerando que o seu sucesso, ainda que relativo, comprometeria mais o seu controle sobre o partido do que uma vitória de Cavaco.
3. Em meu entender, no que talvez discordes de mim, a candidatura de Alegre confronta-se agora com a perspectiva de sucumbir ao teor equívoco das tomadas de posição políticas do próprio Manuel Alegre. Restar-lhe-ia ousar falar na praça pública, mas ao mesmo tempo para dentro do PS, assumindo uma exigência de transformação interna como a que hoje, no Público, é formulada por Ana Benavente, no seu artigo "Cinco teses para o futuro do PS e do país". Mas teria de fazê-lo em termos que continuassem aceitáveis para os que já manifestaram o seu apoio a uma candidatura que, embora capaz de atrair os votos dos eleitores do PS, se apresentou como exterior a ele. Tudo isto exigiria uma redefinição e um reposicionamento políticos incompatíveis com o que têm sido até agora a lógica e o modo de agir políticos de Manuel Alegre - apesar do que são as concepções explícitas de alguns dos melhores dos seus "companheiros de jornada" (tal como aparecem, por vezes, nas páginas da "Opinião Socialista").
4. Ainda que Manuel Alegre - a sua candidatura - tivesse a coragem e a lucidez de formular uma plataforma "nem sem o eleitorado do PS nem com Sócrates", subsistiriam os problemas de fundo que tentei expor há tempos num post, publicado no "5dias", sob o título "Pontos Prévios sobre as Presidenciais".
Aí escrevi e mantenho agora: "Evidentemente, não vejo objecção de princípio a uma intervenção no cenário eleitoral, a título de combate secundário ou de “aproveitamento” que permita chamar a atenção para as questões de fundo e funcione de modo a contestar, no seu próprio campo, os princípios hierárquicos que prevalecem na cena política dominante e lhe são consubstanciais".
Como ressalva, acrescento, no entanto, que, na minha perspectiva, os riscos de uma berlusconização do regime, a favor da "oportunidade" que a crise representa para as oligarquias económico-políticas dominantes, poderão justificar uma participação defensiva nas presidenciais.
Resta, no entanto, que, para ser eficaz, essa participação em defesa das liberdades deveria ter em conta - e creio ser o momento de insistir nesse ponto - um outro aspecto que formulei, no post já citado: aí respondia a alguém, cujo nome me escapa, mas "que insistia na eventual necessidade de uma organização hierárquica e com liderança clara para conquistar e impor o poder revolucionário, fazendo-lhe notar que […] permanecia prisioneiro da problemática e do problema do bom governante ou, no sentido platónico, do político como pastor, quando a emancipação democrática não pode deixar de, desde o primeiro momento, tentar romper com a problemática do rebanho e as condições do arrebanhamento. […] não me tenho cansado de insistir numa concepção activa da cidadania, pelo que entendo o auto-governo dos cidadãos organizados, e na denúncia do carácter classista e anti-democrático da limitação da actividade política regular a “políticos profissionais” e “especializados”. Assim, à partida, os apelos de Manuel Alegre aos “movimentos de cidadãos”, mulheres e homens comuns que assumissem plenamente a acção política como seu direito e responsabilidade, dever-me-ia merecer aplauso e solidariedade.
Há, no entanto, o facto de Manuel Alegre ser um “político profissional” por excelência, o que o tornaria pouco indicado para encabeçar um movimento semelhante de contestação das formas que organizam a cena política dominante. No mínimo, seria necessário um gesto de ruptura com o papel até agora desempenhado, e não, como aconteceu das últimas presidenciais para cá, a sua atitude de ex-dirigente partidário e de “dirigente partidário em potência”. Até mais ver, não deixou a sua atitude de cabecilha de uma oposição frouxa à direcção actual do PS, e tudo leva a crer que uma eventual sua ruptura com o PS não o levaria a romper com a lógica do bom pastor que acima evoquei. Compete-lhe a ele provar que é capaz do contrário. E oxalá fosse capaz de tal coisa – digo-o sem grandes esperanças, mas também sem ironia".
5. De momento, acho que podemos ficar por aqui, ou fazer do fundo destes problemas um ponto de partida para um debate que, sem esquecer a árvore, não perca de vista a floresta. Estarei muito enganado?
Miguel Serras Pereira
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