10.3.10

Vem aí o papa


O Miguel Serras Pereira inaugurou a sua participação no «Vias de Facto» misturando reis de Lewis Caroll com papas de Roma e eu pego no mote, a propósito da visita de Bento16, que se aproxima a passos largos. Vamos lendo notícias sobre pompas e circunstâncias, construções de palas e convívios culturais, com um vago encolher de ombros sobre o seu verdadeiro significado.

Em Inglaterra, que o papa só visitará no segundo semestre deste ano, já há protestos. Por cá, sei agora que há quem esteja a planear uma reunião para discutir o assunto, sem ter ainda percebido de que tipo de iniciativa se trata concretamente.

E, no entanto, motivos não faltam para contestar não só a forma que a visita  vai aparentemente revestir, mas o papel negativo que este papa tem tido no mundo, tanto ou mais do que alguns outros.

Voltarei certamente a este tema, mas ao ouvir falar de vindas de papas a Portugal, vem-me sempre à memória a primeira visita que um papa alguma vez fez a este país: Paulo VI, em 1967, no 50º aniversário das supostas aparições em Fátima.

Nas hostes dos então chamados «católicos progressistas», em que eu me integrava (sim, para quem passe por aqui e não me conheça de outras paragens, vêm daí as minhas raízes contestatárias), foi grande a consternação desde que começou a ser ventilada a hipótese de essa visita vir a ter lugar, já que se temia que ela funcionasse como uma quebra do isolamento internacional a que Portugal estava sujeito, sobretudo desde o início da guerra em África, e como um aval às orientações políticas do governo de Salazar.

Em Novembro de 1966, a conferência episcopal portuguesa dirigiu a Roma um convite formal nesse sentido, mas só em 1 de Maio de 1967, poucos dias antes da visita, é que foi oficiosamente comunicada a decisão definitiva à embaixada de Portugal no Vaticano.

Já que a vinda do papa se apresentava como inevitável, havia que recorrer à imaginação e tentar tirar partido de uma situação de facto. E o tempo era muito escasso – dez dias.

Foi entregue na Nunciatura uma carta que um dos filhos do coronel Varela Gomes escreveu ao papa, pedindo-lhe que intercedesse pela libertação do pai que se encontrava preso pela PIDE. Maria Eugénia Varela Gomes crê na eficácia da iniciativa, já que está convencida de que à mesma se ficou a dever a redução das medidas de segurança a que o marido estava sujeito, de um ano e meio para seis meses.

Aproximava-se o dia 13 de Maio. Soube-se que o Vaticano tinha «despolitizado» a viagem: o papa não viria a Lisboa (o avião papal aterraria em Monte Real), não condecoraria ninguém (em Bombaim, o presidente da União Indiana tinha recebido a mais alta condecoração concedida pelo Vaticano a não cristãos), não seria hóspede do governo mas sim do bispo de Leiria. Sabe-se agora que, cerca de uma semana antes da viagem, o governo recebeu uma informação da Embaixada de Portugal em Madrid, segundo a qual se preparavam atentados contra personalidades portuguesas de vulto e contra o próprio papa. De Nova York, terá vindo uma outra notícia dizendo que um grupo de oficiais estava a organizar um golpe de estado contra Salazar. Estes boatos obrigaram a um reforço das medidas de segurança em Fátima, impedindo, por exemplo, que Paulo VI fizesse alguns percursos a pé, como inicialmente previsto.

Entretanto, em Lisboa, continuavam as tentativas possíveis de protesto. Entre outras, foi elaborado um documento altamente sigiloso, a fazer chegar directamente ao papa, no qual um numeroso grupo de antigos e então actuais dirigentes da Acção Católica e de outras organizações, que como tal se identificavam individualmente a seguir à respectiva assinatura, informavam detalhadamente Paulo VI sobre a situação política existente em Portugal. Havia que garantir que o documento fosse entregue em boas mãos e alguém nos disse que a pessoa a ser procurada em Fátima era um antigo secretário particular do papa João XXIII, que integraria a comitiva de Paulo VI. Alguns de nós pertencíamos ao organismo máximo da Acção Católica – a sua Junta Central -, o que nos permitiu pedir um livre-trânsito, como convidados oficiais, e assim entregar em mão a dita carta.

Nos bastidores do poder, passaram-se episódios que só muito mais tarde viríamos a conhecer. Com a aversão que tinha a Paulo VI e com a sua proverbial misantropia, Salazar ficou furioso quando soube, na véspera das comemorações e já em Monte Real, que o Papa queria que a irmã Lúcia estivesse presente, porque considerou tratar-se de um acto puramente demagógico. Ameaçou mesmo regressar imediatamente a Lisboa, mas acabou por ficar – no Hotel de Monte Real, onde a estadia, com meia pensão, custou 220$00 (encontrei a factura na Torre do Tombo).

As cerimónias decorreram em Fátima com a pompa da época, na presença de mais de um milhão de pessoas. Como membros da Junta Central da Acção Católica fomos convidados privilegiados, juntamente com as autoridades civis e eclesiásticas, e estivemos por isso presentes, como tínhamos exigido (porque precisávamos do tal livre-trânsito), na tribuna de honra, a poucos metros de distância de Américo Tomás, de Salazar, da irmã Lúcia e do papa - uma estranha e muito desagradável experiência de proximidade que nunca esquecerei.

Entretanto, Paulo VI foi almoçar, recatadamente. Como tinha pedido: sopa, frango, um pouco de vinho tinto e um cálice de Porto. Os papas ainda não usavam sapatos Prada.

O regime exultou, Franco Nogueira viria a escrever que «foi um dia de grande emoção popular, de grande espectáculo, de grande política».

Eu, que já estava então com um pé mais ou menos fora da igreja, nunca mais voltei a Fátima - a não ser para almoçar no Tia Alice.

(Publicado também em Vias de Facto)

3 comments:

Anónimo disse...

então e a carta foi entregue ao Paulo 6 ou não?

Joana Lopes disse...

Mais tarde, recebemos um cartão do tal a quem a tínhamos dado em mãos, confirmando que sim.

maria disse...

gostei desta memória, descrita pela Joana. eu tinha oito anos e vi na tv.

Um àparte; felizmente nunca estive perto de tribuna nenhuma...manter uma certa distância tem-me preservado.