23.7.10

Um triste encerramento


O Sindicato dos Jornalistas publicou há dois dias uma exposição sobre o processo de despedimento colectivo de que são alvo 36 trabalhadores do Rádio Clube Português, enviada pelos visados aos diferentes grupos parlamentares.

Deixando de lado as questões de índole laboral, importa sublinhar que se calou uma insituição que, para além de toda a sua história (que começou nos anos 30 do século XX), iniciou um projecto de grande qualidade em Janeiro de 2007, sob a direcção de Luís Osório. Pretendeu-se então fazer uma «rádio de palavra», com forte conteúdo informativo, ao arrepio de todas as tendências de populismo e de facilidade. A subsituação do director, em Julho de 2009, foi um primeiro alerta, o anúncio do encerramento, um ano mais tarde, a má notícia que já se esperava.

Como muito bem sublinha Daniel Sampaio, em texto publicado na revista Pública e que reproduzo do fim deste post, «O RCP morreu às mãos da estratégia economicista, que esmaga tudo o que não é depressa rentável, ou que destrói o que não dá lucro fácil e, sem esforço, se pode substituir por algo descartável: resta saber se deste modo se vai corrompendo o que deveria ficar para o futuro, porque é de memórias tranquilas e pensadas que garantimos a nossa sobrevivência.»

Este facto não me toca apenas como cidadã e como ouvinte. Conheci um pouco a casa por dentro, a simpatia e o profissionalismo de quem mantinha a «chama viva», porque fui várias vezes convidada para emissões do RCP - em três delas para falar de blogues e nunca esquecerei a primeira, em Março de 2008, quando a Shyznogud e eu fomos entrevistadas por Ana Sousa Dias. Havia muita qualidade por aqueles estúdios, que a pouco e pouco foi minguando até se calar. Será a vida. Mas não devia ser.

Last but not the least, recorde-se, antes que o nome desapareça, que foi no RCP que Joaquim Furtado leu o primeiro comunicado do MFA, às 4:26 de 25 de Abril de 1974.



RCP: o fim da palavra
Daniel Sampaio, revista Pública, 23/7/2010

As emissões do Rádio Clube Português (RCP) chegaram ao fim. Foi uma notícia triste, temida por muitos dos que lá trabalhavam, mas apesar de tudo inesperada: já se trabalhava na nova grelha para Setembro, definiam-se projectos para o novo ano e, apesar dos receios face a alguma instabilidade recente, o entusiasmo não esmorecia.

Acompanhei o RCP desde o início deste projecto, em 2007. Em primeiro lugar, gostei que o nome tivesse sido recuperado, pois conhecia-o ligado a grandes momentos de rádio. Depois, interessou-me a ideia: um rádio "de palavra", onde não se ouviria apenas uma sucessão de músicas interrompidas por rápidos noticiários, antes se iria privilegiar a notícia inesperada, o debate aprofundado e o comentário crítico sobre os acontecimentos mais marcantes.

Comecei com João Adelino Faria, num espaço matinal sobre os mais diversos temas sugeridos por ouvintes, quer pelo telefone durante a emissão, quer por correio electrónico durante a semana. O resultado dessas conversas saiu num livro intitulado Daniel Sampaio: Conversas com João Adelino Faria, numa parceria editorial do RCP e da Relógio d’Água. Depois, num formato semelhante, trabalhei com Nuno Domingues, e mais recentemente passei para uma curta intervenção diária, no programa Janela Aberta, com Teresa Gonçalves e Aurélio Gomes (no fim, só com este último). Trabalhei, durante estes três anos, com os directores Luís Osório e Vítor Moura e com o director de programas Paulo Sérgio dos Santos, três profissionais de grande criatividade; e conheci muitos outros radialistas e técnicos do RCP, que não posso referir por falta de espaço.

Houve muitas mudanças, é certo, e o que se passou comigo aconteceu com outros colaboradores e programas. Esta poderá ter sido uma das razões de não sucesso, porque os programas de rádio exigem grande continuidade, de modo a fidelizar os ouvintes, mas o que agora interessa salientar é o profissionalismo dos nomes referidos: com características muito diferentes, são todos pessoas excepcionais com quem aprendi muito e a quem desejo o melhor.

Interessa, contudo, procurar ultrapassar sentimentos pessoais e tentar reflectir: o que está em causa é o declínio da "palavra". Para ouvir música, os poucos ouvintes de rádio já tinham outros produtos consagrados: os mais velhos escolhem os emissores mais tradicionais e os mais novos preferem o computador ou, quando muito, uma rádio mais atrevida.

A oralidade está a perder-se nas famílias, onde se conversa cada vez menos; nas escolas, onde a burocracia ministerial e as dificuldades psico-sociais de muitos jovens fizeram perder o gosto da interacção livre professor-aluno e a alegria de muitos professores em ensinar; nas comunidades, onde se desvaneceu o prazer da tertúlia e se esgotou a solidariedade de vizinhança. As novas gerações, os "net-geners" de Don Tapscott, usam a televisão como música de fundo, enquanto abrem novas "janelas" no computador e fazem à pressa os trabalhos escolares. A vertigem da sociedade actual não parece compatível com um projecto reflexivo como o do RCP, no qual a palavra ponderada e a entrevista sem pressa eram o paradigma escolhido.

O RCP morreu às mãos da estratégia economicista, que esmaga tudo o que não é depressa rentável, ou que destrói o que não dá lucro fácil e, sem esforço, se pode substituir por algo descartável: resta saber se deste modo se vai corrompendo o que deveria ficar para o futuro, porque é de memórias tranquilas e pensadas que garantimos a nossa sobrevivência.

Neste momento de despedida, quero enviar um abraço solidário a todos os que trabalhavam no RCP, com votos de que consigam depressa um local onde possam continuar a trabalhar, para bem de todos nós. E da palavra. E da cultura.
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