Já que não estou, como devia, numa viagem longa e cuidadosamente desejada, consolo-me com a releitura de uma pequena obra-prima de Michel Onfray, Théorie du voyage, Poétique de la géographie (*).
Quem se reconhece como viajante compulsivo (mas viajante que parte mesmo, não de sofá…), mergulha neste curto ensaio e lê-o de um trago, ele próprio com a estrutura de uma viagem, do desejo e da preparação à hora da partida, da estadia ao regresso e à memória decantada daquilo que fica.
«Cada um descobre-se nómada ou sedentário, amante de fluxo, de transportes, de deslocações, ou apaixonado pelo estatismo, pela imobilidade e pelas raízes». Ligado à estrada ou ao solo. Rio ou árvore. Pastor ou camponês (Abel ou Caim).
No primeiro caso, o que conta é «o gosto pelo movimento, a paixão pela mudança, o desejo furioso de mobilidade, a incapacidade visceral de comunhão gregária, a raiva pela independência, o culto da liberdade e a paixão pela improvisação dos mais pequenos factos e gestos». O viajante «ama o seu capricho mais do que a sociedade em que evolui como um estrangeiro, adora a autonomia posta bem acima da salvação da cidade».
E parte-se. Quando? No «movimento da chave na fechadura da porta de casa, quando a deixamos para trás (…), é nesse instante preciso que começa a viagem». Vamos então «verificar a existência real e factual do lugar desejado, entrevisto em ícones, imagens e palavras», guias, livros e mapas, devorados na sacrossanta fase de preparação.
Passo a estadia propriamente dita (seria um longo, muito longo percurso...), salto para o regresso. «Só deveriam ficar três ou quatro sinais, cinco ou seis no máximo», «instantes congelados sob a forma de reactivações imediatas», que não justificam a viagem «mas a tornam parcialmente imortal ». Apenas isso importa porque cada um «só se põe a caminho pelo desejo de partir ao encontro de si próprio no desígnio, muito hipotético, de se reencontrar ou, mesmo e tão somente, de se encontrar».
E, por isso mesmo, «saber-se nómada uma vez é o suficiente para se ter a certeza que se partirá de novo, que a última viagem não será a derradeira. A não ser que a morte aproveite um qualquer trajecto para nos apanhar…». O que seria o mais belo de todos os fins.
(*) Existe uma edição em português, publicada pela Quetzal, mas não a tenho, pelo que as traduções que faço são da minha responsabilidade.
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