Se deixei de ser católica há algumas décadas, esse facto não me impede de manter excelentes relações com antigos compagnons de route e de estar atenta a grupos corajosos que se mantêm activos e lutadores dentro da Igreja, por vezes na maior das adversidades: ainda há pouco mais de três semanas, participei numa sessão do Movimento Internacional Nós Somos Igreja (MINSI), trazido para Portugal pelas minhas antiquíssimas amigas Ana Vicente e Maria João Sande Lemos.
Vem isto a propósito de notícias divulgadas hoje na imprensa sobre tomadas de posição do referido Movimento sobre a beatificação de João Paulo II, que terá lugar no próximo Domingo.
Se há razões internas à comunidade católica para considerar que esta decisão do Vaticano pode ter sido, no mínimo, precipitada (como o regresso a formas indesejáveis de autoritarismo dentro da Igreja), há outras que a transcendem e passo a citar um Comunicado à imprensa do MINSI, datado de 16 de Janeiro de 2011: «Ao ter mais consideração pela hierarquia eclesiástica do que pelas necessidades das pessoas, João Paulo II ajudou a criar um ambiente tóxico no qual se permitiu que padres abusassem sexualmente de crianças, muitas vezes repetidamente, enquanto o seu comportamento criminoso era mantido em segredo, preservando a imagem pública de imaculada liderança.» E também: «O seu posicionamento contra lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (LGBT) torna-o cúmplice das igrejas locais e governos que continuam a negar a igualdade civil e moral das pessoas LGBT. Por outro lado, as suas repetidas reprovações do uso do preservativo complicaram a escolha moral de milhões de pessoas no mundo inteiro, que tentam prevenir a propagação do HIV/SIDA e promover a saúde sexual.»
Se o Vaticano quer honrar alguns dos seus, baseado naquilo que, para mim, são histórias da carochinha, tudo bem. Mas podia escolhê-los sem chocar as nossas memórias recentes, já que pretende que a sua acção e a sua influência saiam dos muros da Basílica de S.Pedro..
Julgo que é bom recordar estes factos antes que nos entrem pela casa dentro reportagens de jornalistas beatos e imagens do velho papa doente, exposto ao mundo até ao fim dos seus dias. Um papa «bom»? Sim, também João, mas XXIII.
Texto do comunicado do MINSI (16/1/2011):
Nós Somos Igreja: Beatificação de um Papa controverso e contraditório
O Papa João Paulo II, cuja beatificação está marcada para dia 1 de Maio de 2011, foi um papa de grandes contradições. A sua tragédia reside na discrepância entre o seu compromisso em reformar e dialogar com o mundo e o seu retorno ao autoritarismo dentro da igreja.
Foi a sua tendência para o autoritarismo espiritual que contribuiu para a maior tragédia do seu mandato enquanto papa: o abuso sexual de milhares de crianças no mundo inteiro. Ao ter mais consideração pela hierarquia eclesiástica do que pelas necessidades das pessoas, João Paulo II ajudou a criar um ambiente tóxico no qual se permitiu que padres abusassem sexualmente de crianças, muitas vezes repetidamente, enquanto o seu comportamento criminoso era mantido em segredo, preservando a imagem pública de imaculada liderança.
Talvez um dos mais expressivos sinais disto tenha sido a forte relação de João Paulo II com a Legião de Cristo e o seu fundador Marcial Maciel. Maciel foi acusado de sérios abusos de mulheres e jovens, durante décadas, muitos dos quais se perpetuaram devido, em parte, à norma interna de 1983 que João Paulo II aprovou para a ordem religiosa de Maciel, e que requeria secretismo, assim como proibia críticas ao seu fundador.
Foi a mesma necessidade de controlo hierárquico de João Paulo II que conduziu a um controle apertado do pensamento teológico, com marcado impacto na vida das pessoas. A sua tentativa de desacreditar a teologia da libertação deixou milhares de pessoas a trabalhar pela libertação sem o pleno suporte teológico e eclesial que mereciam enquanto sofriam o jugo de regimes políticos brutais.
O autoritarismo espiritual era também visível na tentativa de João Paulo II em suprimir o discurso de igualdade de género, o que, entre outras coisas, privou o mundo Católico dos dons que as mulheres teriam trazido à liderança eclesial. O seu posicionamento contra lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (LGBT) torna-o cúmplice das igrejas locais e governos que continuam a negar a igualdade civil e moral das pessoas LGBT. Por outro lado, as suas repetidas reprovações do uso do preservativo complicaram a escolha moral de milhões de pessoas no mundo inteiro, que tentam prevenir a propagação do HIV/SIDA e promover a saúde sexual.
O Movimento Internacional Nós Somos Igreja acredita que a beatificação e a posterior canonização de uma pessoa não deveriam ser medidas por um “milagre” poder ser atribuído a essa pessoa, mas antes como consequência da sua vida, de esta encarnar verdadeiramente os valores de Cristo que procurou, não o poder, mas a felicidade do povo de Deus.
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