A crónica de José Vítor Malheiros, no Público de hoje (sem link), fica aqui na íntegra. É um fortíssimo grito de alma, que tende a ser colectivo porque reflecte muito do que pensam muitos daqueles que não têm (ainda?) coragem de o lançar. É certo que pode ser lido como uma guerra anti-partidos, o que é sempre perigoso, mas não vou por aí: os partidos têm de cumprir o seu papel e só lhes resta a alternativa de agarrarem o touro pelos cornos e de proporem o que honestamente souberem, e puderem, neste terrível momento que atravessamos.
Também não vejo, no texto, motivo para desalentos e desmobilizações. Muito pelo contrário, porque «há algo de que não se pode abdicar: do protesto, da denúncia e da voz. Pelo menos, poderemos dizer aos nossos filhos que há uma vergonha que não merecemos: a de nos termos calado».
A vergonha ou a denúncia
Uma palavra que está a aparecer cada vez com mais frequência nas conversas onde se discute a situação portuguesa - situação económica, financeira ou política - é “vergonha”. Vergonha própria e vergonha alheia. Até amigos estrangeiros me confessam sentirem um bocadinho de vergonha por Portugal. A vergonha própria é aquela que sentimos por aquilo que não conseguimos fazer colectivamente e pelo mundo que vamos deixar aos nossos filhos. A vergonha alheia é por aquilo que vemos os outros fazer em nosso nome. As cascatas de mentiras que jorram da boca dos políticos nacionais, profissionais ou amadores, que afinal sabiam o que juraram não saber, fazem o que juraram não fazer e contradizem o que juraram defender. Mas também a desfaçatez dos empresários que pregam moral mas nem sequer pagam os seus impostos. Ou a oca altivez de quem reclama a mais exigente pose moral mas não perde uma oportunidade de ganhar uns euros à conta de um favor de um banqueiro amigo. Todos nos perguntamos como deixámos as coisas chegar a este ponto, em que não podemos acreditar nos governantes, mas também não podemos acreditar na oposição, nem podemos acreditar que as eleições tragam uma brisa de honestidade. Em que o Presidente da República lança bocas da geral e desaparece quando há trabalho sério a fazer. Em que os bancos acumulam juros fabulosos enquanto o país se arruína, mas pedem esmola ao Estado e roubam impostos ao povo como um Robin dos Bosques ao contrário. Em que os empresários só aparecem para se queixarem do desperdício dos investimentos públicos depois de terem metido ao bolso o dinheiro dos investimentos públicos e quando têm a certeza que a fonte secou. Em que todos os ex-governantes (e os ex-ministros das Finanças, em particular) vêm para a praça pública queixar-se dos actuais governantes e garantir que todos eles sem excepção governaram com escrupulosa honestidade e inexcedível competência e deixaram o país melhor do que o encontraram. Não haverá limite para a lata dos ex-ministros das Finanças? Não há.
As páginas dos jornais são colecções de histórias de terror e as saídas que discutimos para a crise são ou fazer “greve à democracia” (Marinho e Pinto), ou voltar atrás no tempo e não fazer o 25 de Abril (Otelo) ou apostar na democracia directa em vez da democracia representativa (Otelo bis). A política já acabou? Estamos em plena farsa? Qual é o gesto político a fazer? Impugnar os partidos? Greve à democracia como quer o bastonário dos Advogados? Desobediência civil? Emigrar? O que fazer quando os partidos do “arco do poder” se tornaram coios de salteadores e usurpam a República? O que fazer quando nos obrigam a escolher entre Sócrates e Passos Coelho para primeiro-ministro? O que fazer quando nos querem obrigar a escolher entre um Governo de bananas liderados por um aldrabão ou um governo de aldrabões liderados por um banana? O que fazer quando nos obrigam a escolher entre a forca e a guilhotina?
Neste momento de crise, onde os pobres aumentam, onde o número de desempregados reais cresce, onde os salários descem, onde a fome alastra, onde a corrupção é sempre impune, onde a iniquidade é regra, onde o FMI e a União Europeia nos vêm ditar as regras de conduta que garantirão que os banqueiros serão pagos mas que não garantirão absolutamente mais nada - nem bem-estar, nem justiça, nem liberdade, nem democracia, nem progresso, nada daquilo que nos diziam que a Europa simbolizava -, o que se pode esperar? O que se pode fazer? Há algo de que não se pode abdicar: do protesto, da denúncia e da voz. Pelo menos, poderemos dizer aos nossos filhos que há uma vergonha que não merecemos: a de nos termos calado. Essa vergonha cai inteira sobre os submissos militantes dos partidos que escolheram e nos propõem esta forca e esta guilhotina.
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3 comments:
"Pelo menos, poderemos dizer aos nossos filhos que há uma vergonha que não merecemos: a de nos termos calado"
Acho que não chega.
Não chega falar. Não calar.
Não chega lamentar, mesmo que com um lamento bem escrito e estruturado
É preciso, necessário
Pensar e agir fora do quadrado...
Bem, os descendentes deste Vítor Malheiros não se podem queixar: lá falar o Avôzinho falou - falou sempre contra tudo, mas um bocadinho menos contra o investimento público, e o crescimento dos impostos, e a extensão dos direitos sociais, e a lei do arrendamento, e a UE, e o catano, se o catano fosse de esquerda. E, se calhar - não me lembro - é capaz de ter dito algum bem do Euro, e da solidariedade europeia, e da paixão pela Educação, e do Magalhães e, em algum momento de fraqueza, do PS quando este entreabriu a gaveta do socialismo, nos intervalos de fazer de conta que tem a mais remota ideia de como se gere competentemente o capitalismo. Agora, coerentemente, a culpa é de todos os políticos, menos os da esquerda que não estava no Poder mas incluindo a direita que também não estava mas ele acha que é como se estivesse; e dos empresários, que nunca deixaram de ser a súcia de ladrões e exploradores que uma pacífica lenda afiança que são; e dos bancos, que pelos vistos estariam melhor, e com eles o País, se pagassem os impostos que legalmente não pagaram; e dos Ministros das Finanças, mesmo daqueles que tentaram inverter o rumo das coisas mas foram sustidos por, por exemplo, S. Jorge (o Sampaio) e pela opinião pública ... toda a gente, que é como quem diz - ninguém. Confere.
«o que se pode esperar? O que se pode fazer? Há algo de que não se pode abdicar: do protesto, da denúncia e da voz. Pelo menos, poderemos dizer aos nossos filhos que há uma vergonha que não merecemos: a de nos termos calado. Essa vergonha cai inteira sobre os submissos militantes dos partidos que escolheram e nos propõem esta forca e esta guilhotina.»
É pouco! Quando vejo que me tentam matar, matar a minha família, matar a minha comunidade, não me limito a palavras de ordem e cartazes. Pego numa caçadeira…
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