Ainda a propósito da morte de Bin Laden, e pelo que leu neste blogue sobre o assunto, a Diana Andringa recordou-me um texto seu, publicado há dois anos por Ana Gomes no Aba da Causa, e pô-lo à minha disposição para republicação neste blogue. Por ser muito longo, retomo os excertos que me pareceram mais adequados, aconselhando vivamente a leitura na íntegra. E agradeço a sugestão à Diana que sabe que a porta desta casa está sempre mais do que aberta para a receber…
«Alguns meses depois do 11 de Setembro – e gostava que pensassem por um momento como foi fácil levar a opinião pública a sentir-se norte-americana depois desse 11 de Setembro – pediram-me uma intervenção sobre terrorismo. (…) Foi então que me lembrei de um livro, que muitas de vós terão lido, “A Condição Humana”, de André Malraux, da solidão de Tchen no quarto do homem que deve matar, preparando o gesto que o separará para sempre dos outros homens, nauseado por esse gesto que deve cumprir, esse gesto não de um combatente, mas de um assassino. “Assassinar não é só matar...” A dificuldade de tocá-lo mais que de matá-lo, porque tocando a sua carne o homem que dorme retoma a sua natureza humana, e já não é apenas um obstáculo a eliminar, nem mesmo um inimigo, mas alguém que faz parte do mesmo grupo a que o seu sacrificador pertence. Lembrei-me do momento em que, sob o medo do acordar do homem que dorme, Tchen logra fazer o movimento que o levara até aí, o golpe do punhal que busca o coração, e do momento seguinte, aquele em que fica irremediavelmente só, confrontado com o silêncio e essa espécie de vertigem em que mergulhou, para sempre separado do mundo dos vivos, esmagado simultaneamente pelo horror e o gosto do sangue. Senti com ele a vontade de tocar alguém vivo e a necessidade de olhar-se ao espelho, onde a sua face reflectida não mostrava o horror do acto acabado de cometer. (“A criança que se sabia possuída pelo Demónio ia ver no espelho se nada transparecia”, escreveu Guillevic.) E compreendi como, para Tchen, que a morte do intermediário separara para sempre dos outros homens, o terrorismo se impôs como um sentido de vida, o único capaz de o fazer sentir-se na posse completa de si mesmo.
Sei que muitos defendem que é preciso condenar o terrorismo e não compreendê-lo, mas discordo: acho que é preciso ler “A Condição Humana” e compreender Tchen, porque Tchen, como o sabem tantos homens traumatizados por actos cometidos na guerra, tantos assassinos que se não reconhecem no seu crime, vive afinal em cada um de nós.
É em nome de Tchen – ou em nome de Malraux e desse livro admirável sobre a solidão, o absurdo, o horror e a nobreza da condição humana – que cada acto de terrorismo me merece uma reflexão outra que a simples condenação. É fácil condenar, mas não me basta. Preciso de mais, preciso de compreender por que é que alguém escolhe cortar-se assim da Humanidade, por que é que em alguém a Humanidade se esvaíu a tal ponto que se torna capaz de negá-la.
Compreendo assim melhor os atentados suicidas: a solidão de Tchen, a terrível, dolorosa solidão de Tchen, ensinou-me que é mais fácil morrer com o seu crime que sobreviver com ele. E não só para o próprio, porque a violência que se desperta num ser humano pode tornar-se incontrolável mesmo para aquele que a despertou. (…)
Há alguns anos, nas ruas de Bordéus, um homem que Aristides Sousa Mendes salvara dos campos de concentração explicou-me claramente esse processo: depois de uma passagem por Portugal, seguira com os pais e irmãos para os Estados Unidos e, aos 18 anos, fora integrado, como tradutor, no Exército norte-americano e enviado de novo para a Europa. “Era muito jovem”, disse-me, “e quando via soldados mortos não conseguia deixar de chorar. Mas um dia percebi que só chorava quando os mortos eram das tropas aliadas: se fossem nazis, não chorava. Foi quando percebi que também eu podia ser um nazi.” Sim, não é uma questão de ser ariano ou semita: apenas uma questão de negar no Outro aquilo que tem em comum connosco, a sua Humanidade. Os nazis tinham destruído a sua inocência, a sua fé no Homem; tinham-lhe implantado o ódio; e, por esse ódio, assemelhava-se a eles.
Foi por esse judeu belga, que hoje se diz apenas “novaiorquino”, que percebi melhor a (condenável) actuação de Israel em relação aos palestinianos e também os (igualmente condenáveis) atentados em nome da Palestina.
Foi por ele – a primeira pessoa a quem telefonei a 11 de Setembro de 2001 – como por Malraux e por essa personagem trágica que é Tchen, que os atentados suicidas contra as Torres Gémeas de Manhattan não me impuseram sómente a (natural, evidente) condenação, mas a necessidade de perceber. E não creio que haja nessa necessidade, na posição daqueles que, face aos atentados, tentam compreendê-los pela acumulação da violência silenciosa que é a humilhação, qualquer conivência com o terrorismo. Pelo contrário: só entendendo as suas causas é possível, se não erradicá-lo, ao menos diminui-lo significativamente. (…)
É isso, afinal, o terrorismo. O ódio feito acção, a humilhação vingada pelo sangue e a humilhação do Outro, por quem nos sentimos negados na nossa Humanidade.
Temo que, não compreendendo isso, estejamos a criar o aumento do terrorismo, não a sua diminuição. (…)
O terrorismo é a ponta visível, o grito do mal-estar absoluto – algo que nos é tanto mais dificil perceber quanto os tempos nos parecem de relativização. E provoca-nos, a nós que tentámos afastar de nós todo o desconforto, que remetemos a morte para os Hospitais, tomamos pílulas para suportar o absurdo do Mundo e postergamos a velhice, o horror absoluto. É essa a vantagem dos terroristas sobre nós: numa vida sem sentido, o suicídio em nome de uma causa pode ser a única coisa que os justifica; e nós, de tanto que nos afastámos deles, deixámos de ser seus semelhantes, para sermos apenas os que os olham e os julgam. (*) Os que os descrevem como tendo todos os males e todas as taras.
Já alguma vez repararam como usam ser estrangeiros os maus dos filmes de Hollywood? Já repararam como têm cor e origem os bandidos dos muitos programas de televisão sobre a acção policial? Já repararam como nós, os defensores do Estado de Direito e da Convenção de Genebra, achamos normal que se matem Bin Laden e os membros da El-Qaeda? Já repararam como, sem disso darmos conta, continuamos a dividir o Mundo entre os Homens e os Outros?
O terrorismo é o mal absoluto? Talvez. Mas como perante Tchen, perante a náusea que o invade ao saber que vai matar, não consigo deixar de me perguntar: e qual é a minha, a nossa responsabilidade nesse mal?
E só tentando responder a essa pergunta poderemos, creio, caminhar para a paz. Talvez a crise que agora atravessamos e que abalou os alicerces da nossa falsa segurança possa vir a ser uma oportunidade nesse caminho.»
(O realce é meu e este texto foi escrito em 6 de Fevereiro de 2009.)
(*)“Les hommes ne sont pas mes semblables. Ils sont ceux qui me regardent et qui me jugent.” André Malraux, “La Condition Humaine”.
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