1.1.12

O ano 1 da revolução


No Público de ontem (sem link), São José Almeida terminou o ano deixando-nos uma excelente crónica. Alguns excertos e o texto na íntegra.

«No plano da revolução, o ano de 2011 foi o ano 1. Está em marcha uma revolução imposta pelo poder político e accionada pelo Governo do PSD em coligação com o CDS, um executivo de maioria absoluta, legitimado por eleições democráticas, em que estes dois partidos beneficiaram daquilo que se chama o voto de protesto, a única forma eleitoral que os cidadãos têm para mostrar o seu desagrado pelo desempenho do Governo anterior, liderado pelo PS de José Sócrates. E o paradoxo não deixa de se afirmar nesta solução. Os eleitores votam em protesto com um modelo de governação influenciado por opções neoliberais, que responsabilizam pela perda da sua qualidade de vida, mas acabam a eleger uma maioria que assume frontalmente a sua orientação neoliberal. (…)

O objectivo assumido é cristalino e passa pela desestruturação do que é a herança da revolução do 25 de Abril e o modelo de organização social baseado no Estado-previdência, que tem como paradigma a redistribuição da riqueza, orientada por critérios de justiça social e de igualdade de tratamento pelo Estado. (…)

A mais interessante e socialmente dinâmica novidade de 2011 são os movimentos sociais de novo tipo, em que os cidadãos se juntam por causas políticas e cívicas e pela defesa do seu estatuto e direitos, mas em que já não há reconhecimento cego de hierarquia de poder. Isso foi visível nas manifestações de 12 de Março e na criação de grupos como o M12M ou a Iniciativa para uma Auditoria Cidadã.

A incógnita para o futuro é a de saber que caminho tomará a revolução em curso e o que vai acontecer ao euro e à União Europeia. E também qual o papel que as novas formas de contestação terão na construção de um novo mundo novo. Ou seja, se as saídas da crise serão num sentido regressivo ou progressivo, contra ou a favor das pessoas e se evoluiremos para formas de organização social mais autoritárias ou mais democraticamente participadas.»

Na íntegra:

O ano 1 da revolução

“A crise tem sempre um lado positivo, a saída da crise.” Esta frase era dita e repetida por uma professora de Filosofia que tive, no ano lectivo de 1977/78, e destinava-se a provocar em nós o exercício do pensamento dialéctico. Passando a ironia da frase, o conceito de crise encerra sempre sinais do futuro. E nos contornos concretos da crise que se vive em Portugal — em que esta surge num contínuo de crises que têm sido geridas politicamente com o objectivo de baixar o poder de compra e a qualidade de vida dos europeus —, são visíveis sinais do que poderá ser o país no futuro. Sinais diversos e contraditórios, que se expressam pela revolução política em curso e pelo nascimento de novas formas de contestação e de luta social e política.

No plano da revolução, o ano de 2011 foi o ano 1. Está em marcha uma revolução imposta pelo poder político e accionada pelo Governo do PSD em coligação com o CDS, um executivo de maioria absoluta, legitimado por eleições democráticas, em que estes dois partidos beneficiaram daquilo que se chama o voto de protesto, a única forma eleitoral que os cidadãos têm para mostrar o seu desagrado pelo desempenho do Governo anterior, liderado pelo PS de José Sócrates. E o paradoxo não deixa de se afirmar nesta solução. Os eleitores votam em protesto com um modelo de governação influenciado por opções neoliberais, que responsabilizam pela perda da sua qualidade de vida, mas acabam a eleger uma maioria que assume frontalmente a sua orientação neoliberal.

2011 foi, assim, o ano em que o Governo lançou as bases da revolução que quer operar e de que a mensagem de Natal do primeiro-ministro foi mais um momento. O objectivo assumido é cristalino e passa pela desestruturação do que é a herança da revolução do 25 de Abril e o modelo de organização social baseado no Estado-previdência, que tem como paradigma a redistribuição da riqueza, orientada por critérios de justiça social e de igualdade de tratamento pelo Estado. Isto para construir uma nova sociedade baseada na utopia do fim do Estado e no regresso ao Estado assistencialista. E em que o centro da acção política deixa de ser o bem-estar de todas as pessoas, de acordo com princípios de igualdade de tratamento, passando a um novo paradigma em que a regra é a liberdade de mercado, a lógica de gestão privada e a defesa dos interesses privados dos detentores dos grandes grupos económicos multinacionais, da banca ao petróleo, da indústria de guerra à farmacêutica.

É certo que o Governo liderado por Passos Coelho só conseguirá cumprir este projecto, porque antes os governos Sócrates abriram a critérios de governação neoliberais. E também porque Portugal está refém da crise do euro. Ou seja, as opções de cariz ideológico neoliberal do actual Governo têm respaldo no Memorando assinado pelo Estado português com a troika formada pela Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional. O guião de imposições que serviram de garantia a que o Estado português receba empréstimos para assegurar a sobrevivência das contas públicas é a onda em cuja crista podem surfar Passos Coelho e a sua revolução.

Mas isso acontece ainda devido aos sinais de pós-modernidade da política e da sociedade portuguesas. Sinais que mostram o quanto as estruturas e os enquadramentos da sociedade tradicional estão em dissolução também entre nós. Nomeadamente, as estruturas tradicionais de representação política. De tal forma que os eleitores votam por protesto, por raiva, mas não porque se identifiquem e reconheçam nos projectos de sociedade que os partidos apresentam. Aliás, muita da incapacidade de reacção da esquerda em Portugal e na Europa, quer a esquerda de tradição comunista, quer a esquerda de tradição socialdemocrata, vem precisamente da sua falta de projecto e do seu desfasamento e incapacidade de reacção à mutação acelerada do quotidiano político de gestão da sociedade.

Nesta sociedade em profunda transformação, em que a revolução política é feita contra o bem-estar das pessoas e contra o modelo construído a partir da II Guerra Mundial — que se pensava adquirido e sem regressão possível —, em 2011 surgiram também sinais claros de que as pessoas reagem de formas também novas. E foi possível ver nascer em Portugal os movimentos sociais de novo tipo.

É claro que muito do protesto que se expressa na sociedade portuguesa é feito dentro de formas tradicionais. Por um lado, mantém-se o que em outras épocas se chamou a “maioria silenciosa”, que, assustada, se fecha no seu medo e reage por puro conservadorismo, agarrando-se a uma pretensa tradição, mitificada em termos que nem nunca existiu. Por outro lado, muito do protesto é ainda feito pelas vias clássicas, nomeadamente sindicais. Mas mesmo aqui, há em Portugal sinais novos, não só a capacidade de diálogo entre as duas centrais, CGTP e UGT, mas também a capacidade destas de dialogar com os movimentos sociais.

A mais interessante e socialmente dinâmica novidade de 2011 são os movimentos sociais de novo tipo, em que os cidadãos se juntam por causas políticas e cívicas e pela defesa do seu estatuto e direitos, mas em que já não há reconhecimento cego de hierarquia de poder. Isso foi visível nas manifestações de 12 de Março e na criação de grupos como o M12M ou a Iniciativa para uma Auditoria Cidadã.

A incógnita para o futuro é a de saber que caminho tomará a revolução em curso e o que vai acontecer ao euro e à União Europeia. E também qual o papel que as novas formas de contestação terão na construção de um novo mundo novo. Ou seja, se as saídas da crise serão num sentido regressivo ou progressivo, contra ou a favor das pessoas e se evoluiremos para formas de organização social mais autoritárias ou mais democraticamente participadas.
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