19.3.12

Um, dois, três… vamos lá, outra vez!



Texto de Helena Pato, enviado para republicação neste blogue. 

Mesmo sendo pouco dada a saudosismos, tenho essa noite na memória, e não só eu, pois que quando nos encontramos – os da geração de sessenta – e falamos do antigamente na universidade, vem sempre à baila a prisão dos 1.500. Mil novecentos e sessenta e dois. 

1962 foi um período marcante para todos nós envolvidos, de uma maneira ou outra, na Resistência à ditadura, para o movimento associativo e para o regime. 

Estávamos às centenas, sentados no chão por tudo o que era espaço ocupável na cantina da Cidade Universitária de Lisboa. Reclamávamos a possibilidade de comemoração do Dia do Estudante e havia, na cantina, um grupo de umas dezenas de jovens universitários em greve de fome. Era o culminar de uma luta que vinha de muito antes. 

Pela noite dentro, foram chegando mais estudantes que vinham juntar-se a nós. Isto porque, ao cair da noite, começou a correr que a PIDE ia aparecer e fazer prisões assim que a maioria dos que, durante o dia, ali haviam permanecido fosse para casa. Perante este «diz-se que», quem ia embora não foi e desencadeou-se um movimento de telefonemas (de cabines) para colegas ausentes, a chamá-los «para a frente de batalha». Com excepção das meninas dos lares universitários, quase não ficou colega por contactar. «Liga à Emília, eu falo aos jornalistas do República…» Acordados eles e as famílias pela noite dentro, os apoiantes do movimento associativo começaram a chegar. Viam-se entrar, como que estremunhados. Em alguns casos, tinham-se escapado de sapatos na mão, pelo corredor da casa fora, fugindo ao controlo paternal – elas, sobretudo, que a moral vigente não lhes dava cobertura em saídas nocturnas. Um pé-de-vento. Chegaram muitos. Não admitiam que, no dia seguinte, viessem dizer – como era costume do governo – que apenas uma minoria, sem significado, estava naquela luta. Não era verdade, a Universidade de Lisboa, na quase totalidade dos alunos e muitos, muitos docentes, apoiava os dirigentes do movimento associativo, o que era evidente nas reuniões plenárias em que apareciam aos milhares. Por isso, logo que começou a circular que naquela noite ia tudo dentro, até os habitualmente mais difíceis de convencer a agirem se levantaram da cama e foram para lá. 

O previsto – e que durante a noite era já aguardado por todos – aconteceu mesmo. O regime não aguentou nem a pressão da contestação, em crescendo na universidade, nem a coesão dos dirigentes e do movimento estudantil. 

A vida não lhes corria mesmo nada de feição com as inúmeras greves operárias desse ano e agora eram até os meninos da burguesia a criar-lhes problemas? Só faltava essa… Decidiram cortar o mal pela raiz – que já era tarde – e antes de perderem totalmente o controlo da situação, prenderam de uma assentada 1.500 jovens – na esmagadora maioria, oriundos das classes sociais tradicionalmente afectas ao regime (era, não esqueçamos, a Universidade enormemente elitista do início da década de 60). Zás! Tudo «dentro». Intimidados por esta acção repressiva, talvez os pais tivessem mão nos seus filhos. 

Lembro-me de que ainda o sol não tinha aparecido no horizonte quando na curva à esquerda, lá ao fundo, surgiram como coelhos saídos da toca, num caminhar lento, dezenas de camionetas da polícia, azuis e enormes. Uns minutos depois, ao longo da fachada do edifício e mais adiante, só se viam polícias de metralhadora aperrada. Um cenário de ocupação.

As camionetas cercaram os espaços envolventes da Cantina e avançavam uma a uma para junto do edifício. Estacionavam, para se encherem com jovens alunos, à medida que eles eram detidos. Rapazes numas camionetas, raparigas noutras, que não eram consentidas misturas, claro. 

A detenção de 1.500 pessoas não teria sido, em quaisquer circunstâncias, um acto de execução rápida, mas nos termos em que decorreu demorou horas e foi acompanhada de uma chacota geral. Estávamos conscientes daquilo que nos movia, sabíamos o que nos esperava, mas éramos jovens e bem dispostos. 

 Na verdade, naquela madrugada, o militar de alta patente, responsável pela acção preparava-se para entrar no edifício onde «os rebeldes se encontravam acantonados» e, de megafone na mão, anunciar: «Todos quantos se encontram aqui estão detidos. Fazem o favor de me acompanhar». Enchia rapidamente as camionetas, o governo encerrava temporariamente a cantina e assunto arrumado. 

Ainda tentou, oh se tentou! Contudo não conseguiu agir com uma tal presteza. Foi-lhe lembrado, de imediato, que para cumprir a legalidade teria de comunicar individualmente com os que pretendia deter, dando formalmente, a cada um, ordem de detenção e indicação para que o acompanhasse. Acabou reconhecendo ser legítima a pretensão dos dirigentes da RIA (Reunião Inter Associações) e deu início à operação, segundo o que lhe fora reclamado. 

Indescritível, o que então se passou. Num dos lados da sala, encontravam-se, deitados e assistidos por médicos, os estudantes em greve de fome. No resto do edifício, havia gente em todos os espaços. O homem avançava por entre aquela massa compacta de jovens, uns sentados junto às mesas, outros no chão e nas escadas (alguns envolvidos por cobertores, o que dificultava a memorização da sua imagem) e, apontando com um pingalim, dirigia-se directamente a uns cinco de cada vez: «O senhor está detido, acompanhe-me. A senhora está detida, acompanhe-me. O senhor está detido, acompanhe-me”, etc. As pessoas punham-se obediente e prontamente de pé, seguiam-no uns poucos de metros e, subitamente, nas suas costas, sentavam-se de novo no meio dos colegas que cobriam o chão. À camioneta chegava quando muito um – o que ia mais perto de si. O homem apercebia-se disso, mas sempre emproado, e mais ou menos paciente – tratava-se, apesar de tudo, de meninos de uma classe de elite - regressava ao interior da cantina para novas detenções individuais. Entretanto, “a malta” (como se dizia na altura) ria. Galhofa muda. 

A intenção de quem passara aquela “espontânea palavra de ordem” era, porém, bem mais importante do que a simples desobediência: pretendia-se retardar a operação, dar tempo a que a cidade acordasse, se iniciasse o movimento de idas para o trabalho, as lojas fossem abrindo, e o povo de Lisboa desse conta da passagem das camionetas da polícia, cheias de jovens. A repressão sobre os estudantes ficava, desse modo, à vista de todos. 

Assim aconteceu. Em algumas camionetas, sobretudo nas das raparigas, porque atravessaram o Rossio, o Centro e a Baixa, para subirem ao Chiado, escreviam-se bilhetes, em papel de cadernos, com a frase «1.500 estudantes presos, esta manhã, por quererem comemorar o Dia do Estudante» e deitavam-se pelas janelas, para a rua. 

Os rapazes foram levados, uns para Caxias, outros para o Quartel da Parede. Nós, raparigas, por sermos apenas cerca de uma centena (eram tempos em que os pais não autorizavam saídas das filhas, à noite…), fomos para o Governo Civil. Metidas, como sardinhas em lata, nos calabouços – umas trinta por cada minúscula sala. 

Essa espécie de cela tinha capacidade para umas oito pessoas, nem uma só cama, e apenas um estrado em madeira, sem colchões, onde dormia quem por lá passava a noite. Assim sendo, só uma parte de nós podia sentar-se, a maioria tinha que ficar de pé. Totalmente fechados, sem janelas, estes calabouços eram iluminados por uma lâmpada de luz frouxa. A única via de renovação do ar era uma pequeníssima abertura na porta, com um janelo de um palmo por dois, destinada à comunicação com as guardas. 

À tarde já nos tínhamos organizado de modo a podermos, rotativamente, por grupos, dormir no estrado ou sentar-nos. Mas a atmosfera começou a ficar sem oxigénio e houve quem começasse a ter grandes dores de cabeça. «Se não comermos, vamos cair desmaiadas e levam-nos para o hospital ou têm que nos pôr na rua.» Foi assim que se decidiu entrar em greve de fome, como forma de se pressionar as autoridades para uma libertação imediata. «Colegas dos outros calabouços, comunicamos-vos que temos connosco duas tabletes de chocolate e vamos dividi-las por algumas das nossas, as que têm dores de cabeça!» Nesse dia, foi a única vez que alguém comeu, mas a boa disposição, apesar disso, continuava. A algazarra feminina não esmorecia nem com a fome, nem com a saturação do ar. Jovens e mulheres, tinha de assim ser. 

Num calabouço perto de nós, estava uma mulher que, em aflição com a vida, na noite anterior à nossa chegada, tentara suicidar-se, atirando-se da ponte Duarte Pacheco e que, por isso mesmo, havia sido presa. Quando chegou ao Governo Civil, a polícia retirara-lhe o relógio de pulso e a criatura desesperada – agora mais, com a “expropriação” – gritava, pedindo que lho devolvessem. Em vão, que nem guardas havia por perto. Isto foi o que viemos a saber, graças à intervenção de uma das nossas. De facto, quando da nossa entrada, ouvimo-la em grande gritaria, mas logo parou de chorar, atenta àquela insólita invasão de «mulherio». Uns minutos depois, recomeçou. 

A dada altura, a Gabriela, uma das jovens estudantes que se encontravam no calabouço ao lado do meu, aproximou-se da pequena janela na porta e questionou-a acerca da razão da sua prisão e do seu impressionante choro. Entretanto, todas nós, emudecidas pela curiosidade, seguíamos atentamente o diálogo. Uma vez informada, a colega procurou acalmá-la e dar-lhe umas palavrinhas de alento, garantindo-lhe a nossa solidariedade para a recuperação do relógio. A criatura calou-se. Entusiasmada com a reacção da «companheira» de prisão – que entretanto se convertera a um profundo silêncio – a G. prosseguia. Nas restantes celas, tudo à escuta. Durante uns minutos, no sossego do corredor, já só se ouvia a voz animadora da nossa G., claramente satisfeita com o êxito da sua prédica. 

Puro e breve engano, o seu (e o nosso). A Gabriela não tardou a desistir. A do relógio retomara o choro, de novo em altos berros, mas tinha passado a clamar: «As meninas falam assim porque já estão habituadas a vir cá parar, nessas rusgas que eles fazem durante a noite… Falam bem, falam… mas eu quero o meu relógio (pausa). Quero o meu relógio! Falam bem, falam… (pausa). Quero o meu relógio! Falam bem, falam…» Já tarde na noite, começámos a ser libertadas aos poucos e a desgraçada ainda clamava pelo relógio. Quando a G. passou em frente dela, olhou-a um pouco murcha, mas ainda lhe disse, em jeito de esclarecimento: «Olhe que somos estudantes, ouviu? E vamos pedir aos guardas que lhe dêem o relógio.» 

Por momentos, voltou a fazer-se silêncio naquele calabouço. 

(In Saudações, Flausinas, Moedas e Simones, Campo das Letras, 2006, versão modificada) 
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4 comments:

folha seca disse...

Cara Joana Lopes
Permita-me mandar aqui um forte abraço à Helena Pato.
Na altura dos acontecimentos que aqui relata era ainda uma criança de 7 anos e naturalmente que isso não me marcou. Ao longo da vida fui percebendo, não fosse eu neto de um homem que passou 14 anos nas masmorras fascistas. Lutar conta o fascismo como a Helena a Joana e muitos outros, em condições de feroz repressão não pode de forma alguma caír no esquecimento e minha caras, continuem!
Abraços
Rodrigo

Joana Lopes disse...

Muito obrigada, Rodrigo. A Helena Pato passará certamente por aqui e verá o seu comentário.
Abraço.

Anónimo disse...

Por cá, o fascismo caíu, a Democracia "anda", no mundo, por quase todo o lado. Foi uma imposição conquistada (nas últimas décadas) pelos povos,mas estamos ainda muito longe das sociedades da igualdade, justiça e solidariedade que, em jovens, já imaginávamos para a humanidade. A LUTA CONTINUA, pois! Só o acreditar que atrás de nós virá quem prossiga, avance e chegue a ver "luz",nos aquece a alma e nos dá tranquilidade no envelhecimento. Um abraço, Rodrigo e amigos "maiores que o pensamento".
Helena Pato

pilantra disse...

Outro abraço para a Lena, que andámos juntas na «fundação» do SPGL!