2.4.12

José Tengarrinha – a última prisão



José Tengarrinha faz em breve 80 anos e um grande grupo de amigos e companheiros vai prestar-lhe uma justa homenagem que só peca por tardia. Este blogue associa-se publicando alguns textos, a começar por este, de Helena Pato, que me foi enviado pela autora.


 Uma semana antes do dia da revolução, finalmente, regressámos a casa: tínhamos andado por Londres, fugidos, à espera que a situação dele se definisse. De tempos a tempos era isto. 

Voltámos na convicção de que o perigo de prisão havia passado, mas, mesmo assim, no dia da chegada queimámos tudo quanto era papel que pudesse incriminar-nos. Eram tantos – ou a nossa minúcia tão grande – que a sanita em que decorreu a operação estalou com o calor. Depois, pela noite fora, ainda fizemos inúmeros lançamentos da varanda do nosso quarto para os pátios do casario do Bairro das Colónias: Avantes e Militantes, comunicados à população, jornais e posters da CDE, tudo em rolos atados com cordéis (com uma batata dentro para pesarem mais). Foguetões de imprensa ilegal disparados para o espaço para que alguém a lesse e aproveitasse com aquela operação de limpeza. Os materiais clandestinos eram sagrados: evitávamos desperdiçar os que, pelo seu conteúdo e actualidade, constituíam um meio de informação acerca do que se estava a passar no país e nas colónias. A seguir fomos deitar-nos em paz. Paz, porém, efémera. 

Ao alvorecer, tal como era prática deles, tocaram-nos à porta – e, exactamente à mesma hora, à porta de mais uma dúzia de antifascistas em Lisboa. «Já está, são eles!» - dissemos, saltando da cama. 

Não me lembro de que palavras trocámos durante aqueles escassos minutos, em que uma parte da brigada da pide se posicionava discretamente junto ao prédio da Penha de França e os restantes abutres de Silva Pais subiam no elevador. Encaminhei-me para a sala. «Vai abrir, Lena, vou esconder a agenda!» 

Quando, na entrada, me afastaram do seu caminho, irrompendo à bruta porta adentro – bizarramente vestidos a rigor, de fato e gravata – não tive dúvidas de que estava a entregar o futuro do meu companheiro ao terror da repressão fascista e à coragem e firmeza de carácter do homem que eu tão bem conhecia: José Tengarrinha. 

Em nossa casa, quase em simultâneo, o telefone começou a tocar ininterruptamente: eram jornalistas e familiares de amigos (que também haviam sido presos), querendo avisar-nos da vaga de prisões. A notícia estava a chegar aos jornais. Para nós já era tarde: tínhamos em casa três agentes da PIDE/DGS e o chefe de brigada Tinoco. Este, logo à entrada, informou o Zé de que estava «detido para averiguações» – a fórmula do costume. Aparentemente calmo, José Tengarrinha enfrentava-os sem interpelação, mas eu sabia que, naquela serenidade, havia um cérebro em contínua actividade de premeditações, e isso estava para além do que eles podiam controlar. 

Mandaram-no arranjar-se com brevidade e, enquanto um deles se colou à porta entreaberta da casa de banho, os outros dois passaram a pente fino os quartos, a sala, a cozinha, tudo. Procuravam algo que o incriminasse. Em vão, que a operação de limpeza feita na véspera não deixara rasto das actividades que desenvolvíamos. «Para fazer uma busca a sério aqui nem uma semana», dizia, desalentado, o agente Coelho. 

O telefone não se calava. «Que ninguém responda! Bem sabemos que há muita gente a querer falar consigo», avisou um deles, um tal Bronze, enquanto folheava manuscritos, numa busca minuciosa dos trabalhos do historiador, acompanhada de comentários, entre dentes, com o Tinoco. Não deixavam dúvidas do que, pela cidade, estaria a acontecer. 

Finda a busca esmiuçada, começaram a atirar para o chão livros que retiravam das estantes: umas dezenas para apreensão. Ridícula selecção, assente na profunda ignorância daquela gente da PIDE/DGS. Poucos minutos depois, uns atapetavam a sala, outros acumulavam-se em pilhas. Enquanto a devassa decorria, as crianças dormiam. A nossa filha R., ainda bebé, provavelmente sonhava com ursinhos e gaivotas, mas escondia um manancial de informação capaz de lhes alimentar semanas de interrogatórios. Ao toque da campainha da rua, o Zé correra para o carrinho dela e colocara a tal agenda debaixo do colchão. (Na véspera, tínhamos evitado destruí-la por conter um sem número de anotações – importantíssimas, imprescindíveis para a actividade imediata). Embora eu tivesse admitido que eles aí não iriam, nunca fiando, logo que vi oportunidade fui lá buscá-la e passei-a à nossa empregada, que a escondeu junto ao corpo. Pedi-lhe entre dentes e entre portas que fosse comprar comida e a deixasse em casa de uma vizinha. Eles obrigaram-na a mostrar a cesta, estipularam-lhe um tempo para a saída, mas deixaram-na partir. 

Cerca de uma hora após a invasão da casa, José Tengarrinha assistia na sala à operação «tiro à Cultura» e ao amontoar da caça. Os três agentes avançavam zelosos e velozes no empilhar de livros, sob o olhar atento do Chefe de Brigada, mas o seu vozear em surdina criava um ambiente em tudo semelhante ao soturno silêncio dos velórios. Não me era permitido falar com o Zé, mas eu decidira cumprir a rotina matinal das crianças e, às tantas, fui acordar o nosso filho J. Com três anos e meio, frequentava o colégio Fernão Mendes Pinto, em Benfica. A carrinha passava cedo à nossa porta, o tempo já escasseava, mas eu fazia questão de o mandar para a escola, como sempre. Não queríamos que ficasse em casa, assistindo a tudo. Conduzi-o do quarto para a casa de banho, onde acabei de o arranjar. Dada a estrutura do apartamento, a passagem pela sala era inevitável. Sem ter conseguido encontrar, durante esses instantes, uma explicação plausível e adequada para o cenário que o J. teria obrigatoriamente de atravessar, optei por nada lhe dizer. Além disso, decidi abreviar, tanto quanto possível, a despedida do Pai. Imaginei o que estaria a sentir, sabendo que contava com anos de cadeia pela frente. Foi por essa razão que ensaiei – sem sucesso, como se verá… – encaminhá-lo rapidamente para a cozinha, sem lhe dar tempo a que se fosse instalar ao colo do pai. Dei-lhe a mão e avancei decidida. Entrou, pois, na sala, sem qualquer preparação prévia.

Viu todos aqueles livros no chão, uns homens bem vestidos folheando-os, e o Pai sentado num sofá. A cabeça dele rodava para um lado e para o outro, em movimento rápido, espantado com a agitação invulgar daquela sala. Os olhos brilhavam-lhe de alegria e imaginava-se o que o deslumbrava: tantos livros ao estender da mão! Atravessou a sala e foi dar um beijo ao Pai. A seguir, correu para junto dos livros, parou, e dirigiu-se aos pides com um «Olá!» esfusiante, no seu estilo habitual de comunicação. No outro canto da sala, simulando tranquilidade mas com vontade de lhe bater, eu. Eu esperava que ele me obedecesse quando o chamei, veemente: «Vamos, filho?». Nada. Ou por outra, foi então que, olhando-me de frente, e com o vozeirão que se lhe conhecia, me interrogou: 

«Ó Mãe, quem são estes amigos? Estão a ler os nossos livros?» E dirigindo-se ao Zé: «Ó Pai, eu hoje não quero ir à escola, vou ficar também a ver os livros com vocês». Tive de o puxar (à força) até à cozinha. Contrariado no seu apelo, enquanto tomava o pequeno-almoço, insistia na pergunta «Quem são aqueles amigos, Mãe?» e eu continuava sem saber o que responder. Irritadíssima, acabei por lhe dizer, num tom meio zangado: «Não são amigos, meu filho!». Foi uma resposta que bastou: pegou na «pasta» da escolinha, assumiu uma expressão de quem ficou esclarecido e exclamou (peremptório): «Não são nossos amigos, Mãe? Então vou para a minha escola!» 

No dia seguinte, eu fiz 35 anos e reuni a família em casa, num jantar, a fazer de conta que a vida prosseguia. As crianças batiam palmas, contentes, soprando as velas do bolo de aniversário, e eu só ansiava pelo dia 25 de Abril... Assim mesmo: 25 de Abril! Tinha-me sido marcada a primeira visita com o Zé para essa histórica quinta-feira da Revolução. 

No dia 24 de Abril, deitei-me ansiosa por que chegasse a manhã. Às 11 horas ia a Caxias, vê-lo e levar-lhe roupas. Pelas 4 da madrugada, o telefone tocou na sala e, em sobressalto, fui atender. Do outro lado, uma voz grave: «Venho informá-la de que estão em curso movimentações militares para derrubar o regime… Estamos a começar uma revolução e uma das primeiras coisas que vamos fazer é libertar o seu marido e todos os presos políticos.» 

«Só me faltava este!», pensei e, sem dizer uma palavra, desliguei o telefone. «Provocadores!», resmunguei, enquanto regressava à cama. Pelas 6 horas, acordaram-me outra vez, mas agora era alguém cuja voz reconheci. O jornalista António Santos deu-me a notícia, ele falava, eu chorava e, ao fundo, ouvia-se o barulho da rotativa do jornal. 

Desde então, e até à madrugada do dia 27, segui nas margens da revolução, sem testemunhar a sua componente popular. Horas e horas num sufoco, com o coração no fio da navalha. 

 Vi o telejornal do dia 25 em casa de um amigo que conhecia da Seara Nova e das CDE, o Alberto Pedroso. Hoje, passados todos estes anos, não me lembro de coisas que então julguei que iriam ficar dentro de mim até ao fim dos meus dias. Vividos em estados emocionais exacerbadíssimos e numa explosão de afectos, aqueles acontecimentos pareciam estar a ser inscritos de forma indelével na minha memória. É, pois, surpreendente que não tenha a menor ideia do que, à noite, vi na RTP e que nem me lembre de uma grande parte do que fiz durante o dia. Ficaram-me retalhos: uma reunião dos familiares dos presos em Benfica (em casa do Fernando Correia e da Julieta), uma ida à rádio com a Aida Magro, a convite do Comando do MFA, para falarmos em representação das famílias, e o meu pai, ao meio-dia, no passeio em frente da casa da Encarnação, vestido de uma maneira inusitada, de pijama, e numa exteriorização pública de sentimentos impensável na sua personalidade. Fui lá deixar os nossos filhos, e ele com ar calmo, cansado de décadas sem liberdade – referindo-se à PIDE, ao governo e aos fascistas –, clamava para os vizinhos e a quem passava: «Esses gajos têm de ser julgados num tribunal plenário. Não pode haver perdão para o que fizeram!» Talvez seja esta a imagem do dia 25 de Abril que retenho com maior precisão. O resto aparece-me formatado em sequências de «quadradinhos» dispersos, como se fosse uma banda desenhada desconstruída. Por vezes, colo às recordações que guardo as imagens audiovisuais reproduzidas na comunicação social, ao logo destes trinta e tal anos, e deixo de ter o meu 25 de Abril para passar a ter um outro, o que a história me vem ajudando a desenhar. 

Muito diferente é, na verdade, o que me sucede com a memória da noite de 25 para 26, essa parecendo-me infinitamente precisa. Ainda na pele. Nada se perdeu, nada foi acrescentado, nada do que vivi me foi adulterado. A noite de pânico dos fuzilamentos que receávamos há-de viver comigo até ao fim dos meus dias. 

O estertor do regime revelou-se particularmente difícil para os presos políticos, sobretudo para aqueles, homens e mulheres, que se encontravam em Caxias. Começaram por desconhecer a natureza das movimentações de que se davam conta, admitindo tratar-se de um golpe da extrema-direita. Depois, foram horas e horas de espera, de angústia, que partilhámos com eles, porque lha adivinhámos, minuto a minuto. No exterior do forte, nós, as famílias, tínhamos a informação de que estavam a decorrer cuidadas negociações e conhecíamos o risco de os pides ou os guardas prisionais, antes de se entregarem, poderem abrir fogo contra os presos. Pouco terá ficado registado, gravado, filmado, impresso, acerca do desfiar das longas e dramáticas horas vividas por quem aguardava cá fora – sobretudo na proximidade da prisão. Na memória do grupo aí presente estarão, de certeza, esculpidos pedaços tenebrosos do princípio da revolução. Soubemos mais tarde que, perante a hipótese de irem sendo libertados a conta-gotas, de acordo com um critério supostamente negociado, responderam: «Só saímos todos de uma vez, ao mesmo tempo!» Assim aconteceu. 

As portas da prisão de Caxias abriram-se na madrugada de 27 de Abril de 1974. Assisti, de longe, à saída do Zé. Tentei aproximar-me dele, mas não consegui. Nem acenar-lhe. Percebi que nesse momento não me pertencia: havia uma multidão que o envolvia e um mundo de jornalistas que o entrevistavam. Vi-o entrar para um carro e avançar, a custo, por entre milhares de pessoas que o saudavam entusiasticamente, com a alegria própria das horas de libertação. Entretanto, ali parada junto dos amigos, eu aclamava, emocionada, todos os companheiros que iam saindo. 

Houve um jornalista que me deu o recado: «O Tengarrinha pediu-me para lhe dizer que vai ter a casa depois das reuniões que agora o esperam – com o MFA e com a CDE». 

Abracei-o 24 horas depois. 

(*) A partir de textos publicados anteriormente. 
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6 comments:

ana disse...

Texto tocante... de vivências que parecem tão esquecidas...

folha seca disse...

Cara Joana Lopes
Há coisas que nunca deviam ser esquecidas. Este texto da Helena Pato deixou-me várias vezes com o monitor embaciado. Tocante como a ana refere.
Abraço à Joana e à Helena.
Rodrigo

vítor dias disse...

Desculpem o desabafo individualista mas este texto da Helena veio aumentar a minha dor por «o tempo das cerejas» original já não estar online como resultado de uma sacanice qualquer.

É que aí, eu cheguei a alinhar uma dúzia de histórias sobre o 25 de Abril de 74 e sobre os dias vividos em Caxias entre 6 de Abril (data da prisão ocasional de 40 democratas)e a madrugada de 27.

E,uma delas,era sobre o facto, quanto a mim, perdido nas brumas da memória, de que durante todos aquele período os familiares dos presos de 6 e depois dos presos de 18 de Abril (entre os quais J. Tengarrinha)mantiveram uma quotidiana presença pressionadora junto à prisão, tendo mesmo realizado no domingo anterior ao 25de Abril uma significativa concentração.

Outra dessas recordações escritas, lembrava que, na ala virada para o morro, era o José Tengarrinha que todos os dias mais animava o pessoal, dando informações diversas
(género: hoje deve estar a realizar-se o Encontro Nacional da Oposição Democrática , etc, etc.).
E foi também o José Tengarrinha que, embora na minha memória, em termos ainda imprecisos, fez circular a mensagem enviada do exterior por claxon de automóvel pelo Carlos Carvalhas e por outro economista (Ferreira, já não me lembro do 1º nome)na noite de 25.

Nalita disse...

Obrigada pelo relato sentido de acontecimentos tão marcantes para a sua história de vida pessoal e para a nossa História colectica. Tocante, comovente, impressivo!

Nalita disse...

Tocante, comovente, impressivo. Obrigada pelo relato sentido deste pedaço da sua história de vida pessoal e da nossa História colectiva.

mariajmacedo disse...

Vivi, pessoalmente, essa noite em Caxias, tinha amigos presos que sairam com o Tengarrinhae nessa longa noite.
Obrigada à Helena Pato por passar a papel este pedaço da nossa história de resistência.